Opinião

“Estamos todos no mesmo barco”

4 jun 2022 15:45

99% da população mundial está num barco que enfrenta ondas gigantes e está a meter água

Na enclausurada primavera de 2020 ouvimos muitas vezes a expressão “estamos todos no mesmo barco”.

Quando a Covid-19 obrigou o mundo a abrandar e as pessoas a fecharem-se em casa, as cidades estavam desertas e ouviam-se os passarinhos em vez dos carros.

No medo de uma doença mortal desconhecida que enchia hospitais, repetia-se a ideia de que não havia diferença entre ricos e pobres e que todos estavam sujeitos a sofrer do mesmo modo.

A romântica imagem da humanidade estar toda no mesmo barco e, portanto, partilhar o mesmo destino.

Mas, nós sabemos que não é bem assim.

No mais famoso dos barcos da História, o Titanic, foi visível a diferente sorte dos passageiros do barco: 60% dos passageiros da primeira classe sobreviveram; 75% dos passageiros da terceira classe morreram.

Portanto, mesmo num naufrágio que vitimou mais de 1.500 pessoas… nem todos estavam no mesmo barco. Afinal, quando acontece alguma crise, catástrofe, ou desgraça, os mais pobres são muito mais afetados do que os ricos.

Sabemos agora que nem todos naufragaram no barco da Covid-19.

A Oxfam (uma confederação de ONG que procura combater a pobreza à escala global) publicou um estudo (Profiting from pain, 23/05/2022) que mostra precisamente essa desigualdade.

De acordo com as estimativas deste estudo, perderam-se 125 milhões de empregos e o rendimento médio de 99% das pessoas diminuiu.

Já as receitas das empresas não sofreram o mesmo retrocesso, muito pelo contrário.

Por exemplo, as empresas alimentares (produção de alimentos e venda-supermercados) aumentaram as vendas e os bilionários do setor aumentaram a fortuna em 45% nos últimos dois anos.

Já as petrolíferas viram as suas receitas – bem como as margens de lucro! – aumentar durante a pandemia: cinco das maiores petrolíferas do mundo (BP, Shell, TotalEnergies, Exxon, e Chevron) lucraram, em 2021, 82 mil milhões de dólares, cerca de 2.600 dólares por segundo.

Lucro que foi direito para os bolsos dos acionistas, contribuindo para engrossar a fortuna de muitos bilionários.

Significativo é o caso do homem mais rico do mundo, que durante a pandemia viu a sua fortuna crescer 699%.

Elon Musk tem uma fortuna avaliada em 250 mil milhões de dólares (um valor superior ao PIB português, suficiente para comprar 500 submarinos iguais aos da Marinha portuguesa).

Um valor tão absurdo que se Musk perdesse 99% da fortuna continuaria a ser um dos 0,0001% mais ricos do mundo – uma das 8.000 pessoas mais ricas do mundo.

A pandemia, como agora o é a guerra na Ucrânia, foi uma excelente desculpa para lucros exorbitantes das empresas à custa do cidadão comum.

A cada crise vemos que a desigualdade se torna maior. Gritante. Imoral. Tanto que mesmo FMI e Banco Mundial – na sua linguagem hermética – recomendam taxar os impostos excessivos.

Não, não estamos todos no mesmo barco.

99% da população mundial está num barco que enfrenta ondas gigantes e está a meter água, mas há uma minoria de ricos que está numa paradisíaca ilha com bom tempo, mojitos, festas e massagens.

 

Texto escrito segudo as regras do Acordo Ortográfico de 1990