Opinião

É urgente (re)inventar o futuro

27 jan 2023 16:34

A função da Poesia é essa: filiar o poeta-leitor numa visão singular do humanismo, dos valores que sustêm a integridade

«O tempo tudo cura ou tudo mói». Porém, é imperioso buscar respostas para a inquietude que todos experimentamos, num grito de sobrevivência aos caos em que nos situamos. Poucos dias após a efeméride do centenário de nascimento do poeta Eugénio de Andrade (EA), recupero várias das suas frases basilares, que ecoam de tão vivas e irrefutáveis: “Escrevo quando não tenho”; ou “Eu nem sequer gosto de escrever, acontece-me às vezes estar tão desesperado que me refugio no papel, como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida”.

Eugénio prossegue nesta senda de humildade e despojamento, proferindo que “é possível que só as árvores tenham raízes, mas o poeta sempre se alimentou de utopias. Deixem-me, pois, pensar que o homem ainda tem possibilidades de se tornar humano”. Neste plano, todos podemos assumir o gesto e a grandeza da Poesia, enquanto instrumento de transformação e reinvenção do futuro. Não apenas enquanto leitores, mas também, enquanto redactores dessa necessidade do espírito que, de súbito, procura uma expressão.

O autor que trabalhou como funcionário público, exercendo durante 35 anos as funções de Inspector Administrativo do Ministério da Saúde, lega-nos que “a sabedoria (…) é uma segunda inocência” e que “ser poeta também é (…), essa inabilidade para o mundo do lucro e da usura”. É nesta premissa, que todos poderemos ser ‘poetas’, pois é para ele (e inquestionavelmente para nós), “na poesia que se encontra isso que os políticos tão afanosamente buscam: a (…) identidade”.

Pois se me socorro das palavras de EA, como de uma âncora para a afirmação do princípio da cidadania, pilar da igualdade e da tolerância, reafirmo que sou fervoroso defensor da grandeza, vinculada na simplicidade, no autêntico e não no artificialismo superficial (muito menos no poder). EA, sem redundâncias, convoca-nos à virtude da interioridade: “O mundo é conduzido por loucos e ambiciosos, que só têm em mira o êxito e o lucro, estão-se nas tintas para as preocupações dos poetas, que são, como toda a gente sabe, seres da utopia, essa utopia sem a qual não há progresso”.

A função da Poesia é essa: filiar o poeta-leitor numa visão singular do humanismo, dos valores que sustêm a integridade. Mas também dos silenciamentos que suscitam consciência dos limites do humano, despojado de ambições pretensiosas. Bebendo nas palavras de EA, podemos alcançar a responsabilidade de seres actuantes, imbuídos de um sentido ético e verdadeiro. Por isso é comovente o seu poema intitulado «Urgentemente», tão actual e incorruptível.

Não é ao acaso, que emana como um hino de esperança, entoado pela voz de Cátia Mazari Oliveira, cantautora portuguesa da nova geração, mais conhecida pelo nome artístico de «A Garota Não». É urgente o amor / É urgente um barco no mar // É urgente destruir certas palavras, / ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, muitas espadas. // É urgente inventar alegria, / multiplicar os beijos, as searas, / é urgente descobrir rosas e rios / e manhãs claras. // Cai o silêncio nos ombros e a luz / impura, até doer. / É urgente o amor, é urgente / permanecer (EA, in “Até Amanhã”, 1956).