Opinião

Dicionário improvisado (VII)

15 jul 2022 09:00

Quantas camadas de protecção precisas ainda despir até seres livre? Ah, já te sentes livre. Então de que te proteges?

Camada

Quantas camadas de protecção precisas ainda despir até seres livre? Ah, já te sentes livre. Então de que te proteges?

Desenho

Talvez o mundo esteja repleto de anjos maus; anjos que carregam consigo enormes álbuns de fotografias invisíveis; anjos arquivistas. Estamos muito bem, muito felizes da vida, a cantarolar no banho ou a beijar alguém, a comer bolo de chocolate, a tentar adormecer, a cheirar uma flor ou a pensar no que trará o pai natal, a experimentar roupa nova, a desenhar bonecos num guardanapo: e eis-nos surpreendidos por um destes anjos, que nos exibe mesmo à frente dos olhos uma fotografia do seu álbum. E a fotografia representa um qualquer instante banal do nosso passado, um momento esquecido da nossa vida; vemo-nos, reconhecemo-nos. E percebemos, somos forçados a perceber, como a vida é uma simples acumulação de momentos banais, momentos que logo esquecemos, momentos que não conseguimos saborear adequadamente; uma acumulação de fotografias que nem nos demos ao trabalho de arquivar. Desenhos esquecidos num guardanapo.

Ebulição

Dentro de mim permanece a minha liberdade, intensa e caótica. Em ebulição permanente, à procura de uma janela aberta.

Exterior

Talvez cada pessoa com quem nos cruzamos seja uma janela para um universo diferente. E por isso, nunca estamos realmente sozinhos: basta olhar para fora de nós.

Ginástica

Não sei o que mais pesa em mim: se o silêncio, se o vazio, se o riso, se o medo, se o prazer, se a angústia, se o sonho, se a indecisão, se a esperança, se a saudade. Sinto-me uma acumulação de pesos, que oscilam e se contorcem, buscando a supremacia. Compondo o puzzle que sou. E vou gerindo e equilibrando todas estas forças contraditórias como se a minha vida fosse uma espécie de ginástica permanente de emoções. Por vezes, não vivo: faço gestão de pesos. Evito quedas. Respiro. Sonho com a possibilidade de leveza. Sem saber o que mais pesa em mim.

Nudez

Despiu-se de tudo, lentamente. Muito lentamente. Até ficar apenas o amor.

Toque

Consegues desracionalizar o toque? Ignorar intenção e motivação, ignorar a possibilidade de consequência. Ser toque puro, simplesmente. Consegues?

Urgência

Entro no escritório e digo bom dia; alguém responde, num murmúrio contrariado. Rostos fechados, cabeças cabisbaixas; o silvo dos computadores misturado com os gemidos das cadeiras, com o sussurro das respirações. Ligo o computador e aguardo, sem pressa: mais uma vez, a sensação de que precisa de mais tempo para arrancar. Senti algo semelhante em relação ao elevador: mais vagaroso, como se estivesse cansado; e antes, o autoclismo: tanto tempo para encher; e a água do duche: uma eternidade até ficar quente. Tudo mais demorado. Olho o computador e pergunto se serei eu que estarei mais lento em relação à vida. Mais impaciente em relação ao mundo? Com urgência, com pressa; mas de quê?

Visão

O que não conseguimos ver cega-nos.