Opinião

O Supremo, o Aborto e fim do Império Americano

13 jul 2022 11:48

Vivemos na nossa nuvem confortável a partir da qual nos vamos esquecendo de que a maioria não tem acesso àquilo que nós consideramos elementar, como a saúde, a educação, etc… Aqueles que vivem com dignidade são muito menos do que imaginamos

Nos EUA, seis juízes conservadores votaram contra três liberais para revogarem a decisão do caso "Roe" que, em 1973, legalizou a interrupção voluntária da gravidez. Com esta decisão histórica, assistimos em pleno 2022 a uma redução dos direitos da mulher. Como se não bastasse, Clarence Thomas, um desses juízes conservadores, afirma que o Supremo deve reconsiderar os direitos gay e o planeamento familiar após esta revogação de Roe vs. Wade.

Alguém me ensinou que devemos acordar todos os dias para tentarmos ser um pouco melhores. E eu penso: como é que seis pessoas acordam um dia tranquilamente para diminuir ou retirar a liberdade dos outros em nome de um orquestrado “bem comum” ou de uma religião? Tomam decisões que tornam a vida pior para os mais desfavorecidos, continuando a aumentar o fosso entre classes, tal como vieram a fazer outros que os antecederam. Não aprendemos nada?

Esta decisão, ao ser federal, deixa a possibilidade de as classes mais beneficiadas, numa situação de gravidez indesejada, poderem apanhar um singelo avião para se deslocarem para um estado onde esta revogação não tenha sido feita e resolverem o assunto tranquilamente. Uma das muitas hipocrisias do ainda mais poderoso país do Mundo é que todas as preocupações destes movimentos pró-vida desaparecem depois de as crianças nascerem e ficarem à mercê das (im)possibilidades das suas famílias.

Se é estatisticamente evidente que é nas faixas da população mais desfavorecidas que se verifica um maior número de interrupções da gravidez, parece-me evidente que melhorar as condições de vida das pessoas com políticas sociais mais eficazes, de modo diminuir o fosso entre estratos sociais, traria francas melhorias neste capítulo.

A verdade, não nos esqueçamos, é que se trata de um país cuja história recente de racismo e  desigualdade social atinge um nível de vergonha indescritível e onde um P.I.B. impressionante é canalizado primariamente para processos de domínio global, em vez de se focar nos problemas reais dos seus cidadãos. Neste contexto, é importante saber que estatisticamente as Afro-Americanas continuam a ser quem mais recorre à interrupção voluntária da gravidez, assim como continuam a ser uma classe com menos possibilidades, com menos acesso aos direitos que deviam de ser de todos, num país que quer ser um exemplo para o Mundo, mas que continua apenas a tentar ser a referência à custa de armamento de ponta e de pseudoglamour Hollywooodesco.

Olhando para o mapa religioso de forma objetiva, na grande maioria dos casos, a religião de cada um é fruto da geografia ou do contexto familiar. Se estes senhores que tendem a radicalizar os limites do cristianismo em prol de um conjunto de decisões onde a intolerância é o mote principal; se estes senhores nascessem com esta natureza num contexto social diferente, que limites iriam atingir? No fundo, o que os distingue de líderes de outros pontos do globo que nós facilmente apelidamos de terroristas? Apenas uma coisa: a sociedade e uma democracia que, apesar de falhar muito, ainda impõe limites a este tipo de radicais ocidentais.

Eu sei que já escrevi um artigo à volta do paradoxo da tolerância de Karl Popper, mas preciso mesmo de o citar neste texto: a sociedade tem de ser mais musculada intelectualmente para ser absolutamente intolerante com a a intolerância. Sinceramente, não há paciência para lidar com alguém como Clarence Thomas. Alguém que se julga moralmente superior, movido a hipocrisia e insensibilidade. Não tenho palavras para descrever com honestidade a repulsa que este tipo de ser me causa. Um verme com poder de decisão vitalício não deixa de ser um verme...

Vivemos na nossa nuvem confortável a partir da qual nos vamos esquecendo de que a maioria não tem acesso àquilo que nós consideramos elementar, como a saúde, a educação, etc… Aqueles que vivem com dignidade são muito menos do que imaginamos. Portanto, a minha posição é em absoluto pelo desenvolvimento de uma liberdade responsável. Não devemos tratar de forma leviana assuntos sérios e mantenho-me completamente focado na manutenção da segurança e os direitos de todos, e, neste caso em particular, da mulher que tem direito a decidir o que fazer com o seu corpo, consciente de que uma das hipóteses de decisão é viável em condições de salubridade. A Sociedade deve continuar o seu caminho em direção a uma equidade real. Acho que a IVG não é um contracetivo, recorrer ao aborto deve ser algo raro. A Educação e a Ciência devem manter o seu papel de ajudar a comunidade a entender onde começa realmente o ser humano. Deve também garantir que estas situações se tornem cada vez mais residuais, não devendo existir qualquer tipo de banalização da prática.

Não quero que este texto tenha um vibe paternalista em relação à mulher. Tenho a felicidade de conhecer muitas senhoras bem mais poderosas do que eu. Espero conseguir deixar clara a ideia de que este texto é sobre a liberdade e a proteção daqueles que necessitam dela contra o fundamentalismo e as tomadas de decisão por agenda. Neste caso concreto, é sobre um direito que a mulher (o ser humano que biologicamente pode abrigar dentro de si outro ser humano) adquiriu e que agora lhe é revogado numa democracia ocidental e isso para mim é realmente triste. Esta decisão irá causar mais sofrimento e dor a quem não tem mecanismos para se defender.

Recentemente fiquei chocado ao saber que no mês de junho morreram em Portugal cinco mulheres assassinadas pelos seus companheiros. (Ficaria igualmente chocado se se tratasse de cinco homens assassinados em situação de violência doméstica.) É muito difícil proteger alguém que teme pela sua vida dentro do seu lar. É verdade que são casos individuais, muitas vezes ocultos, e daí toda a complexidade para poder agir de forma adequada. É difícil atuar a nível individual nos casos que não conseguimos controlar. Portanto, torna-se imperativo refletir sobre esta situação e sobre as intenções que este conjunto de juízes vão trazer num futuro próximo. Apesar de sermos um pequeno país e uma democracia relativamente recente, temos uma maturidade coletiva que, creio, jamais permitirá este tipo de recuos na liberdade de todos. Resta-nos ficar a observar os próximos capítulos daquilo que me parece ser o começo do fim do Império Americano.

Supostamente, a pandemia ia ser o flagelo que nos iria tornar melhores. Íamos crescer individual e coletivamente. Um vírus insignificante não nos ia derrubar. Vinha aí um mundo cheio de arco-íris, unicórnios e pandas dançarinos. Nós somos a espécie dominante. Somos os maiores: somos conscientes, inteligentes, superiores. Facilmente superamos um simples vírus. E conseguimos!

No entanto, os mecanismos biológicos de um vírus quando causa uma doença não são fruto de qualquer intenção. É puro determinismo biológico. O sal não decide se quer ou não dissolver-se na água. Não pode escolher. Nós podemos e escolhemos mal: invasão da Ucrania, dez milhões de crianças no limiar mais baixo da subnutrição (E os números estão a aumentar!), meio ambiente a caminho do Apocalipse… Realmente conseguimos fazer melhor do que aqueles vírus insignificantes. Realmente conseguimos ser os melhores a falhar!