Opinião

Caminhar é mais que uma arte

23 abr 2022 15:45

Talvez caminhar seja dos gestos mais audaciosos

O caminho é uma metáfora para a vida.

Caminhar é um gesto vital, movimento que perpetua sobrevivência e equilíbrio.

Inúmeros são os autores e cientistas, oriundos de vários quadrantes, que se reportam à caminhada como uma aproximação à arte, ou como um princípio de transformação pessoal e social, num quadro de referência à inteligibilidade, sobre o potencial construtivo contido no acto de existir.

Concluí recentemente a leitura do livro de Erling Kagge (filósofo e explorador norueguês) – A Arte de Caminhar: um passo de cada vez (Quetzal, 2018) - ensaio sobre a sua experiência enquanto aventureiro e ‘caminhante’, onde releva que o movimento imprimido à mente pelo corpo por via da passada possibilita que se viaje à mesma velocidade da alma.

Ao longo das duzentas páginas, Kagge afirma que se nos deslocarmos demasiado depressa, não poderemos acompanhar a passada interior.

Na formulação bíblica “caminhamos como se víssemos o invisível”, surgem-nos interrogações sobre o que nos liga (aos caminhos) e o que nos separa (das fronteiras).

A confiança, o papel dos sentimentos, a superação de limites, a transformação, o surgimento de barreiras, são questões criativamente trabalhadas no espaço (caminho), num tempo real e tangível, mas também num lugar (in)finito.

O caminho é físico, mas é também uma metáfora para o invisível, no encontro com pessoas e lugares que (des)conhecemos.

Talvez caminhar seja dos gestos mais audaciosos. Poderemos fazê-lo na presença de outros, mas há sempre um silêncio que assoma no movimento.

“O silêncio é tão abstracto quanto o caminhar é concreto”, afirma Kagge. Tal pressupõe um ingrediente crucial: a lentidão.

Daí a assunção de que um “homem livre tem tempo”, pois o acto de caminhar expande-o, ao invés de o fazer colapsar.

É o ‘sentimento de desejo’ que se faz acompanhar de uma espécie de anarquia individual: parar e avançar quando se escolhe; retroceder quando se perspectiva que é a melhor solução.

Olhar em redor, recentrando os sentidos, permitindo que os pensamentos fluam, sem que se extingam pela voracidade do tempo, admitindo que a gramática existencial é acumulação de silêncios e movimento, aglomerado de avanços e retrocessos que imprimem intensidade e ritmo ao equilíbrio.

Por isso, quando caminhamos, assolam ideias e experiências passadas que se entrecruzam com circunstâncias que estamos a vivenciar no instante.

Atrevo-me a dizer que ao quotidiano faz falta um sentimento singular: a excitação, algo comparável com o “desassossego” que remete para a busca do que já Sócrates aludia: a “(…) procura de algo quando não fazemos a mínima ideia do que se trata.”

Também Kirkegaard deambulava pelas ruas afirmando “caminhei em direcção aos meus melhores pensamentos”, numa espécie de fulgor, que Arne Næss representou por via de uma equação traduzindo a felicidade, a que estava associada a dor e a paixão.

O algoritmo pressupõe que se tivermos pouco fulgor não experimentaremos senão uma ínfima parte de bem-estar, mesmo que o sofrimento esteja presente na equação.

No acto de caminhar parece haver uma reinterpretação da essência e dimensão das dificuldades.

É premonitória a frase de Kirkegaard: “Não percas a tua vontade de caminhar: (…) em direcção a um estado de bem-estar (…)”, relevando que o genuíno entusiasmo provém do esforço de avançarmos na direcção certa.

Há muitas coisas que deveríamos ou poderíamos fazer, mas somente algumas que teremos (imperiosamente) que cumprir.