Palavra de Honra | Sou um ser gastronómico-literário
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Palavra de Honra | Sou um ser gastronómico-literário
17 ago 2025 11:00
Ana Gilbert, Artista das palavras-imagens e psicoterapeuta

- Já não há paciência ... para a atitude de certa rede social, a tentar convencer-me de que publicações com música são mais desejáveis e alcançam mais pessoas. Prefiro acreditar que alguém irá reparar no silêncio das imagens.- Detesto... vendedoras de loja que me tratam como se eu fosse uma amiga íntima. Perco a vontade de comprar. Vista por outro ângulo, é uma excelente estratégia anti-consumo.- A ideia... de ser freguesa de um estabelecimento me fascina. Aprecio a lenta construção diária, feita de poucas palavras e percepções subtis (diferente das tais vendedoras). De ser conhecida nos meus gestos e gostos. De fazer parte de uma comunidade.- Questiono-me se... haverá um manual para formação de vendedoras pseudo-íntimas, com treinos de espelho e voz. E depois, seminários para trocas de experiências e aprimoramento de técnicas de elogios. Com apresentação de casos, talvez?- Adoro... saborear palavras. Desdobrá-las em suas imagens e cheiros. Sentir-lhes as notas de cultivo e a textura da pele. Sou um ser gastronómico-literário.- Lembro-me tantas vezes... de ter dezesseis anos, estar a experimentar um biquíni num provador de uma loja e, ao retirá-lo, enroscar a alça no pequeno ventilador em funcionamento, instalado na lateral da cabine. Depois, sussurrar o acontecido à minha irmã que estava na cabine ao lado. E o acesso interminável de riso (em parte, de nervoso, ao imaginar a expressão da vendedora). Lembro-me sempre dessas pequenas cumplicidades do afeto.- Desejo secretamente... lançar palavras-imagens ao vento e cultivar a confiança inabalável de que as pessoas certas as receberão. Encontros e reencontros.- Tenho saudades... dos voos nas madrugadas em aviões pequenos, em que podia ir à cabine do piloto (meu pai) e olhar o mundo mediado pela leitura que fazia dos instrumentos de voo. Na infância, o avião era uma espécie de segunda casa, com a qual tinha intimidade.- O medo que tive.. já adulta, do alerta de bomba em pleno voo transatlântico. A clareza momentânea do que realmente importava. (Afinal, foi um alarme falso.)- Sinto vergonha alheia... diante da inconsciência de certas pessoas em suas exibições autocentradas. A vaidade cega e expõe ao ridículo.- O futuro... não é mais como era antigamente, já dizia, em 1986, o grande Renato Russo, músico e fundador da banda Legião Urbana. E isso nunca foi tão verdade. Gostaria de um final mais digno para a humanidade do que a guerra e o colapso ambiental. Talvez a colisão da Terra com um grande meteoro que deixasse um estrondoso rastro de silêncio como reverência.- Se eu encontrar... a porta da outra dimensão, atravesso sem pestanejar. Mas, por via das dúvidas, amarro um barbante do lado de cá.- Prometo... divertir-me mais com as vendedoras invasivas (só não sei se consigo dar a minha palavra de honra neste quesito).- Tenho orgulho... das pessoas que assumem suas irresponsabilidades, insignificâncias e dúvidas. Que lutam por diversidade e direitos; que combatem preconceitos. Tenho orgulho das manifestações humanas em nome de algo maior e coletivo. É delas que quero estar perto e fazer parte.