Sociedade

Frederico Lourenço: “é um erro fundamental as pessoas pensarem que têm o direito de ser felizes"

11 jun 2015 00:00

Frederico Lourenço, escritor, tradutor e professor universitário sublinha a importância dos autores clássicos para a construção da bagagem cultura e afirma a necessidade de se desenvolveram hábitos de leitura.

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Jacinto Silva Duro

De que fala, O Lugar Supraceleste, o seu novo livro?
É uma colectânea de vários textos sobre muitos temas diferentes, essencialmente de literatura, filosofia, antiguidade e música clássicas e tem também textos autobiográficos. É um conjunto muito ecléctico de temas diferentes.

António Pinto Ribeiro, no Jornal de Letras, escreve que é “uma radiografia da nossa contemporaneidade”. São textos com uma visão muito global da nossa existência mas também marcada pelo glocal?
Escrevo muito do ponto de vista local. São textos sobre Coimbra, sobre o que é a vida lá, sobre a realidade de viver nessa cidade e a universidade. Não tenho grande vocação para escrever sobre coisas universais, a não ser que sejam muito abstractas e tenham um alcance universal, como os temas filosóficos ou religiosos – que são questões que me interessam bastante e que atravessam todo o livro. O primeiro e último textos do livro são sobre Deus e a Sua existência. Desse ponto de vista, é possível sair do local para o universal, mas eu seria mais modesto na descrição do meu livro. Ele transmite os meus interesses literários filosóficos e musicais e também tem uma componente autobiográfica, que acho interessante, pois permite-me pensar sobre a minha vida passar e tentar extrair desses pensamentos coisas mais gerais que possam também interessar a mais pessoas.

Também tem abordado os textos clássicos na sua escrita. A partir da Ilíada, diz que é “um erro fundamental as pessoas pensarem que têm o direito de ser felizes, pois o normal é estarem a sofrer”. Fora dos textos clássicos, também é essa a condição humana?
Sou muito pessimista e não tenho muitas razões para mudar a minha perspectiva. Abro o jornal ou fecho o noticiário e vejo que o mundo à nossa volta não mudou para melhor, desde a Antiguidade clássica. Os gregos antigos já se debatiam com muitos desses problemas, como a maldade do ser humano, a crueldade para com os outros, a educação dos jovens e o problema das novas gerações.. que é também um vazio de interesses por coisas que, antes, eram mais interessantes para os mais novos. Hoje, não sei como a escola consegue competir com o acesso que eles têm a todas as “questões internéticas”. Se retirarmos o wifi aos jovens eles enlouquecem. A primeira coisa que fazem, quando chegam a qualquer lado é perguntar o código de acesso. Os jovens não são capazes de estar sentados a pensar ou a ler um livro. Se eu tivesse filhos, seria o primeiro a tirar-lhes os telemóveis e tablets. Escrevo sobre questões que, desde a Antiguidade, são nossas conhecidas, e que nos chegaram pelo facto de os gregos terem inventado esta coisa fantástica que é o alfabeto, no século VIII a.C., que permitiu escrever pensamentos, reflexões, filosofia, literatura. Os gregos foram os primeiros, em grande medida, a colocar por escrito tanta coisa que, ainda hoje, é relevante para nós. Fazendo esse confronto, entre o que é a realidade e o que era há 2500 anos, o ser humano poderia ter feito uma evolução melhor do que a que fez.

Antigamente, quem não conhecesse os autores clássicos, dificilmente, seria considerado uma pessoa culta. E hoje?
Depende da definição de “pessoa culta”. Não consigo considerar como culto, alguém que desconhece os autores clássicos. Por autores clássicos, entendo outros que não apenas os gregos e romanos; evidentemente, Camões e outros que permitam ter uma ideia geral da história da literatura e da cultura. Sem isso não há cultura, o acumular de tudo o que se foi juntando ao longo de séculos e milénios. Fecharmos os olhos a isso é a incultura. Cícero dizia que: “se não cultivarmos a mente, tal como o agricultor cultiva e trabalha a terra, a mente não vai dar nada”. Sou um grande defensor da cultura em moldes “antigos” e os livros são importantes. Ler incentiva a capacidade de abstracção de modo a conseguirmos chegar à nossa própria imagem mental e, ao mesmo tempo, incentivam o pensamento crítico. Quando somos confrontados com imagens, vemos... imagens, mas com ideias somos convidados a ponderar se concordamos ou se pensamos de outra forma.

Nesta Europa actual, deveríamos ser mais germânicos, anglo-saxónicos ou gregos clássicos?
Devemos ser mais portugueses, naquilo que ser português tem de bom. Falta-nos uma relação mais assumida com a nossa história. Os portugueses precisavam de olhar para o que foi a história de Portugal desde a sua fundação. Somos um País antigo, que teve um papel muito importante no mundo e que também não deu bons exemplos. Perseguimos os judeus de uma forma que, hoje, esquecemos e fomos um País de negreiros, mesmo assim deveriamos perceber as coisas más e valorizar as boas. De modo geral, os portugueses ignoram o seu passado. Se o conhecessem teriam uma compreensão mais vasta do nosso lugar na Europa e no Mundo. Por muito anglófilo que seja, não acredito que seria útil ou viável tornar-nos mais americanos ou alemães.

Sendo um classicista em contacto com o grego e latim, qual é a sua opinião sobre o Acordo Ortográfico?
Não consigo vibrar muito com os problemas do Acordo Ortográfico. Tanto me parece péssima a ortografia anterior, como a nova. Ambas são analfabetas. Uma ortografia de que poderia gostar seria uma que fosse etimológica. Que mostrasse, como acontece com o francês ou inglês, a origem das palavras... mais ou menos a ortografia que se lê na primeira edição d'Os Maias que é uma obra que está escrita numa ortografia “culta”, que procura no grego e latim a origem das palavras. As reformas que foram feitas ao longo do século XX, tornaram a escrita da língua cada vez mais incaracterística e analfabeta. Tem havido resistência às nova regras, possivelmente, porque parte da população sente que o seu “património imaterial” foi negociado entre Portugal e Brasil, sem que tenha sido ouvida. Contudo, não percebo como podem considerar que a escrita anterior a esta nova é património... quando muito, podem, considerar que a nova ortografia ainda é pior que a antiga, mas essa já era péssima.

Assumiu a homossexualidade há algum tempo. Embora tenhamos assistido a uma mudança de mentalidades em Portugal, ainda em Abril, esteve em Lisboa o psicoterapeuta, Richard Cohen, a anunciar uma “cura” para a homossexualidade e a Igreja ficou muito “incomodada” com a vitória do sim, na Irlanda, no referendo sobre a adopção por casais gays. Ainda há muito que fazer?
A questão do terapeuta está desfasada da própria codificação de doenças da Organização Mundial de Saúde, desde o início dos anos 70, que não aceita a homossexualidade como doença. Essa ideia de que ela se pode curar é à revelia daquilo que é o consenso na sociedade ocidental – não estou a falar dos cinco países do mundo onde a homossexualidade é punida com a pena de morte. O consenso existe da esquerda para a direita, no espectro político. O partido conservador na Inglaterra foi o que defendeu e pôs em prática o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em Portugal, foi o PS. Essa atitude de que é uma doença para curar é uma coisa muito antiga e retrógrada.

“Não se pode praticar o catolicismo e a homossexualidade ao mesmo tempo”, referiu há algum tempo. A natureza da pessoa e a prática da sua fé são inconciliáveis?
É uma questão muito complexa. Estou a escrever, neste momento, um livro sobre a Bíblia e espero chegar a uma ideia mais definida sobre isso. As coisas mudaram muito, dentro do catolicismo... o facto de ser homossexual não seria, agora, o entrave que foi há anos. O meu problema com a Igreja Católica já não passa tanto pela homossexualidade. Passa por dúvidas em relação à história da instituição e pela dificuldade em conciliar aquilo que ela foi ao longo dos últimos dois mil anos, com a mensagem original de Cristo. Não me considero um católico praticante, mas a religião é um tema que me interessa. Os autores da Bíblia escreveram no pressuposto de serem levados à letra, mas é quase impossível ter certezas em relação aos autores, quem foram e o que presenciaram. Talvez haja certezas acerca de algumas cartas de São Paulo, que são aceites como tendo sido ele o autor. Em relação a tudo o resto, não há opiniões unânimes. Historiadores, crentes, não acreditam que o Evangelho de São João tenha sido escrito por ele. A Bíblia é um ponto de interrogação gigantesco. Uma colectânea de pontos de interrogação que nos interpelam. É o livro mais fascinante que conheço. É uma obra com muitas contradições, mas com mensagens fantásticas, válidas ainda hoje, independentemente de acreditarmos ou não em Deus.

Os ideais de Cristo teriam mais hipóteses de vingar na actualidade?
Penso que seria ela por ela. O ser humano não evoluiu tanto quanto deveria e não está muito melhor agora do que estava no tempo em que Jesus viveu. Desconfio que, hoje, Cristo sentiria a mesma falta de acolhimento que o levou a ser crucificado.

Sente o peso da herança do seu pai, o filósofo, tradutor e escritor, e professor catedrático de Lógica e Filosofia da Matemática, no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Manuel António Lourenço?
Além de ser meu pai, foi meu colega na Universidade de Lisboa, durante mais de 20 anos. Uma das razões que me terão levado a concorrer a Coimbra foi poder deixar de ser “o filho do Manuel Lourenço”. Mas ele foi a figura mais importante da minha vida porque lhe devo tudo o que sou. Se não tivesse colocado da fasquia sempre muito alta... nunca me teria esforçado tanto.

Foi a partir dos 40 anos que a sua carreira deu um salto. Foi tarde ou ainda foi a tempo?
Ter começado a publicar com essa idade foi uma vantagem. Isso deu-me o tempo para ter alguma coisa a dizer. Neste novo livro, tento explicar que ser escritor não é só ter jeito para escrever é, essencialmente, ter algo para dizer. Para isso, é preciso esperar. Aos 20 anos, tinha a noção de que gostaria de ser escritor, mas não tinha nada para dizer. Precisava de tempo para ler, para viver, para bater com a cabeça nas paredes. Sinto que é agora, na faixa dos 50, que maturidade e consolidação das minhas ideias.

Perfil
Apaixonado pelos Clássicos

Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963. Licenciou-se, em 1988, em Línguas e Literaturas Clássicas na Universidade de Lisboa, onde se viria a doutorar 11 anos depois, com uma tese sobre os cantos líricos de Eurípides. É elemento do corpo docente da Faculdade de Letras dessa universidade e, desde 2009, também passou a integrar o da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Além do estudo da poesia grega, tem-se dedicado à exegese da obra de Platão e Camões. Colaborou com a Cinemateca Portuguesa na elaboração de textos sobre cinema e na feitura de vários catálogos. Publicou ensaios de crítica literária nas revistas Journal of Hellenic Studies, Classical Quarterly, Euphrosyne, Humanitas e Colóquio-Letras. Foi colaborador dos jornais Independente, Expresso, Público e Diário de Notícias. É autor das obras Pode um Desejo Imenso, O Curso das Estrelas e À Beira do Mundo, pelas quais foi distinguido com o prémio PEN Clube 2002. São também seus os livros Amar não Acaba (2004), A Máquina do Arcanjo (2006), A Formosa Pintura do Mundo (2005) e O Lugar Supraceleste (2015).