Sociedade

Álvaro Laborinho Lúcio, magistrado: "As democracias perderam a alma e o peso”

16 dez 2016 00:00

O magistrado diz que é preciso que os cidadãos exerçam uma cidadania mais activa e, sobretudo, informada, pois é necessário um “travão urgente” no populismo que está a destruir as democracias.

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Jacinto Silva Duro

Cidadania e cultura democráticaé o tema que vai abordar na sexta-feira, dia 16, na Associação Lar Emanuel, em Leiria, durante um jantar conferência, às 20 horas. É um assunto que, nos últimos tempos, face aos desafios que se têm colocado ao Mundo, tem assumido um papel de destaque… pela negativa. O que se passa com a sociedade actual? As pessoas estão a perder a capacidade de pensamento crítico? Ao longo das últimas décadas, fomos, progressivamente, perdendo o sentido da importância da intervenção e da ocupação do espaço público e do exercício activo da cidadania, na ideia de que a sociedade de consumo tinha em si respostas suficientes para os nossos anseios. Criou-se um tempo de uma certa abundância e de um aparente bem-estar social generalizado. Fomos absorvendo a ideia de que o quotidiano se fazia mais a dar importância às aquisições económicas e ao mundo da economia do que ao mundo da política e ao debate político. Não faltou quem fosse dizendo que esse era um tempo passado, que, agora, já não era preciso debate à volta dos valores essenciais da vida em sociedade. O importante era competir. E nós aceitámos esse caminho e fomos por aí. O que acontece é que, hoje, ao virar da página, e, sobretudo, depois da crise que começou em 2008, fomos verificando que isso era uma ilusão. Quando fomos confrontados com o desaparecimento da importância da "dimensão política", demos conta que se tinha imposto não uma ideologia de mercado, mas, mais do que isso, impôs- se uma verdadeira teologia de mercado. O mercado manda e a política vai perdendo peso, poder e figuras. Passámos a falar da “centralidade de Bruxelas”, lá longe. O Estado foi-se desterritorializando e a nossa relação directa com os representantes do Estado era feita quase só com intermediários, visto que o poder central estava na Europa. As instituições europeias desligaram-se da base democrática e cidadã, que as apoiava, que as escolhia e reclamava delas intervenção política e crítica. Nesse cenário, o poder político não estava. Falhava. Ia respondendo, sistematicamente, dizendo que "não havia alternativa", começou-se a falar de "inevitabilidade" e do "politicamente correcto". As democracias perderam a alma e o peso. Instalou-se uma espécie de indiferença nos cidadãos e estes sentiam que não valia a pena intervir no espaço público, uma vez que qualquer intervenção se faz com a convicção de que, a partir dela, é possível ter alguma capacidade modificadora. Ora, quando os cidadãos percebem que não têm capacidade modificadora, desinteressam-se do debate político e do espaço público. E chegámos a este ponto onde, por vezes, se atribui responsabilidades às próprias democracias de serem elas as responsáveis daquilo que não corre bem.Quando o voto popular não vai no sentido que se espera, a crítica já não está naquilo contra o qual se vota, mas no modo como se exerce o voto e na própria democracia. Temos de colocar um travão urgente em tudo isto, porque, as ameaças que pairam sobre a Europa, e não só, podem levar ao retorno a políticas ditatoriais de extrema-direita.

O público parece ter perdido espírito crítico, levando ao aparecimento de demagogos, como Trump, que dizem às massas o que elas querem ouvir. A democracia interpela os cidadãos a caminhar para uma "democracia cognitiva". Isto é, aumentar o conhecimento, aumentar a informação e serem mais críticos na intervenção que fazem. Contudo, não estou seguro de que isso tenha acontecido. Temos, hoje, mais contacto do que comunicação - o avanço tecnológico e as redes sociais permitem-nos estar em contacto com tudo - e duvido muito que estejamos verdadeiramente informados acerca de muito daquilo com que contactamos. Estas redes sociais dão-nos uma aparência de poder. Qualquer pessoa entra nas redes sociais, emite uma opinião, por mais disparatada que seja, e tem uma sensação de poder. Mas é uma noção falaciosa, pois isso não significa poder algum. O que há é emoção e o populismo é o melhor que existe para as reacções emocionais. As pessoas que estão à frente dos movimentos populistas sabem que têm grande sucesso na afirmação das suas perspectivas porque, nas bases, está quem não avalia criticamente as suas propostas e a elas adere mais emocional do que intelectualmente.

O debate nas redes sociais é formado por simples conversas de café que nada mudam, apenas têm agora um alcance global. Valem o que valem. Globalmente, têm força porque modificam o ponto de vista, mas não têm poder político, no sentido do poder legítimo e modificador. Mas têm um poder de influência negativa, que permite criar uma imagem falsa de igualdade. Ora, a igualdade deve ser procurada na elevação dos cidadãos e não na sua redução a uma condição básica em que todos são iguais, porque uns têm muito pouco de diferença dos outros. A democracia é ela própria, pela sua natureza, conflito e debate de ideias, aproximação cultural dos problemas. Quando falo em "aproximação cultural" quero dizer "aproximação informada".

Em Leiria, dia 16, na Associação Lar Emanuel
“Bater com as portas é muito feio”

Álvaro Laborinho Lúcio, nascido na Nazaré há 74 anos, é mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, magistrado de carreira, e juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça. Entre 1990 e 1996, “esteve”, com costuma dizer, como secretário de Estado da Administração Judiciária, como ministro da Justiça e como deputado à Assembleia da República. Entre 2003 e 2006, ocupou o cargo de ministro da República para os Açores. Amante fervoroso de teatro e música, a escrita é a sua última aventura. Em balanço ao seu trabalho público, diz não ter noção "de ter dado muito" à vida pública. "Dei o que fui capaz. Dei com gosto e com empenho, mas dei o que se exige a um cidadão comum a quem se convida para participar em cargos públicos." Se tivesse de escolher um cargo, entre os vários que teve, diria que é magistrado. "Tudo o resto, estive. Nunca fui ministro, estive ministro." Dirigiu o Centro de Estudos Judiciários durante dez anos com "um gozo imenso" e com resultados que o fazem sentir orgulhoso do trabalho feito. Na vida política, foi sempre independente e nunca se filiou em partido algum. "Um independente é alguém que não se compromete com um partido, enquanto pessoa, mas que, ao comprometer-se com um partido, no exercício da vida política, assume lealdade para com ele. Estava no Parlamento, quando saí senti que o meu pensamento já não correspondia ao que era pretendido. Não bati com a porta, porque aprendi, quando era pequeno, que bater com as portas é muito feio." Vai falar de Cidadania e cultura democrática, na sexta-feira, dia 16, na Associação Lar Emanuel, em Leiria, às 20 horas.

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