Entrevista

Rui Passadouro: “A preocupação maior que tenho agora é com os emigrantes”

27 mar 2020 14:54

O presidente da Sub-Região de Leiria da Ordem dos Médicos admite que o novo coronavírus só irá perder força quando se atingir a imunidade de grupo. O delegado de Saúde Pública adverte para o risco do regresso de emigrantes

Rui Passadouro é presidente da Sub-Região de Leiria da Ordem dos Médicos
Ricardo Graça

Estamos a viver uma situação nunca antes vista. Este é um verdadeiro teste ao Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
Se aguentarmos, podemos assumir que passámos no teste, que avaliou a capacidade de resposta do serviço, mas sobretudo dos profissionais. O SNS é um chapéu muito grande, onde estão as pessoas. A maior parte dos profissionais: médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, técnicos de saúde ambiental e outras classes profissionais têm uma dedicação extrema. Por exemplo, no meu serviço temos feito diariamente 12 horas de trabalho, sem pensar em aumentos de remunerações. Ninguém disse: venho trabalhar se me pagarem. No caso da saúde pública, a situação é um bocadinho ainda mais esforçada, porque temos de planear a resposta para dentro dos serviços e ainda responder a todas as solicitações das pessoas individuais e das empresas. A nossa preocupação, neste momento, são os muitos portugueses que estavam a trabalhar no estrangeiro, sobretudo em Espanha e França, e na perspectiva de terem uma doença querem regressar para junto das famílias. Isto traz-nos um acréscimo de trabalho brutal, porque tiveram potencialmente em contacto com infectados, o que obriga a procedimentos de isolamento profiláctico. Temos de fazer contactos diários com esta gente a ver como estão a evoluir e dar- -lhes algum apoio moral. Ficar isolado 14 dias, não deve ser nada fácil.

Nenhum país estava preparado para esta pandemia. O SNS português estará mais ou menos apto do que os outros países? Para responder à pandemia tivemos de fazer uma organização diferente. Não podemos sobrepor doença crónica e doença aguda banal a uma pandemia. Se os serviços de saúde reagiram bem?
Não sei se não deveríamos ter feito isto mais cedo [estado de emergência]. Nos cuidados de saúde primários dividimos e orientámos os serviços para o Covid-19 para uma melhor capacidade de resposta. Em termos hospitalares ainda estamos para ver, porque sabemos que à volta de 5% do total dos doentes afectados poderão ter necessidade de cuidados intensivos e 15% necessidade de enfermaria geral. A situação poder-se-á complicar. Vimos o que aconteceu com a China e com a Itália, onde tiveram de construir hospitais. Iremos, a curto prazo, avaliar doentes fora do hospital, porque temos de nos convencer que nem toda a gente pode ir ao hospital porque o sistema colapsa. As autoridades locais e regionais e as forças vivas da sociedade já se reuniram para darem uma resposta alternativa. Se tivermos necessidade de arranjar espaço fora dos serviços já temos locais identificados nos vários concelhos do Agrupamento.

Poderemos ter beneficiado do atraso da chegada do vírus?
Tivemos a vantagem de ter duas semanas a ver o trabalho dos outros e a poder preparar-nos. Acho que aprendemos alguma coisa. De qualquer maneira, ainda estamos numa fase muito inicial. Aquilo que vemos é a subida do nosso número de infectados. Estas medidas de contingência deveriam ter sido um pouco mais fortes logo no início. O que verificámos é que nas zonas onde foi feita uma maior contingência o número de casos diminuiu. Um decréscimo de casos no dia-a-dia não quer dizer que as pessoas não vão ficar doentes, mas se houver menos casos e se estes forem espaçados, o nosso SNS vai ter capacidade de resposta. É isso que todos nós queremos.

Há pessoas que podem ter contraído Covid-19 sem saberem?
Sim. 80% das pessoas vão ter doença ligeira e alguns assintomática. Muita gente vai ter uma pequena rinorreia, um surto febril, dores musculares e, não se fazendo análises, acaba por passar sem saber que teve a doença. O que queremos é que gradualmente as pessoas tenham a doença e fiquem imunes. O vírus vai ficar na comunidade, portanto qualquer um que não tenha apanhado a doença ou não tenha sido vacinado - neste momento não existe vacina - pode contrai-la. Quantas mais pessoas a tiverem contraído de forma ligeira, maior é a imunidade de grupo. Se 95% da população tiver esta doença de forma ligeira, o vírus já não consegue circular na comunidade e ficamos mais protegidos, mas, atenção, não defendo a exposição das pessoas em massa ao vírus.

A estratégia do primeiro-ministro britânico começou por ser a imunidade de grupo, medida que suspendeu. Nesta fase faz sentido esta medida?
Isso é um disparate completo. Não há sistema nenhum no mundo que tenha capacidade de tratar doentes de forma exponencial todos os dias em cuidados intensivos e em enfermarias gerais. Se o País tivesse um ventilador para cada pessoa não haveria risco, agora, não tendo não há capacidade de responder a todos ao mesmo tempo e teríamos de começar a seleccionar pessoas, o que seria uma coisa trágica. Para os médicos, isso seria o dilema da sua vida. Temos de trabalhar para que isso não venha a acontecer. Só agora começam a aparecer os primeiros casos em Leiria. Como se explica? Na área do nosso agrupamento (somos cinco concelhos) temos 17 casos positivos e dois óbitos [informação disponibilizada na manhã de ontem]. Estes casos têm pelo menos sete dias de evolução, ou seja, já foram apanhados há sete dias (em média), portanto não sabemos quantos é que vêm por aí. Temos menos casos, mas provavelmente é porque as pessoas de Leiria não trocaram tantos contactos como outros. A maior preocupação que tenho agora é com os emigrantes. A nossa região tem muita gente no estrangeiro, que neste momento está também a viver uma situação muito crítica e com o seu regresso podemos ter muitos casos e esta informação já estar desactualizada quando o jornal for publicado. O regresso dos emigrantes é um desafio acrescido para nós. Não sei se conseguiremos identificar todas essas pessoas. Na fronteira não é verificado se têm ou não exposição nem são informadas as autoridades de saúde. Acabamos por não ter esse controlo. As pessoas vêm para as famílias, aparentemente não têm doença nenhuma e quando dão conta dos sintomas (pode durar 14 dias) já contaminaram muita gente. Por aí, vamos passar um bocadinho mal em Leiria.

“No futuro, a saúde tem de ser reconhecida como uma área prioritária, porque poderemos ter a melhor economia do mundo, mas se não tivermos saúde acontece o que está a acontecer agora”

Faz sentido usar a máscara no exterior?
No momento, não há disseminação activa na comunidade, portanto não faz sentido. Só se a pessoa estiver infectada. A máscara cirúrgica tem a função de evitar que quando a pessoa tosse, espirra ou fala o vírus saia e contamine as pessoas à sua volta. Outra coisa são as pessoas que têm um risco acrescido por terem exposição. Admito que uma pessoa que está numa caixa de supermercado, no atendimento ao público, possa ter alguma protecção, mas sempre que toca com a mão na máscara deveria trocá-la. Agora os clientes que entram e saem não, a menos que tenham algum problema de saúde, porque senão estão é a proteger os outros, não a eles.

As fake news têm sido um problema e contribuem para o pânico das pessoas? Até mesmo na nossa área profissional, as múltiplas fontes de informação, por vezes, dificultam a nossa linha de trabalho. Se temos orientações para trabalhar numa área e depois de repente começa a aparecer nas redes sociais: a China fez aquilo, a Itália fez aquilo, o Japão fez aquilo e deixamos de seguir a nossa linha, o resultado final não é o mesmo. As fake news confundem as pessoas. Por exemplo, estudos que referem o perigo de medicamentos como os usados para a hipertensão. A evidência não sustenta isso. Se as pessoas abandonarem determinadas terapêuticas fundamentais há riscos. Em relação ao ibuprofeno não me parece que o problema seja muito grave, porque é facilmente substituível. Mesmo assim não há evidência para isso. Mas no caso dos hipertensores é trágico, porque aquele grupo de medicamentos não é facilmente substituível. Duvidar é bom, mas temos de nos esclarecer junto de fontes fidedignas.

Qual o sentido das várias teorias da conspiração para o aparecimento deste vírus, como ter sido libertado para reduzir a população ou escapado sem querer?
De acordo com os estudos da Organização Mundial da Saúde isso não tem fundamento. Foi identificado o genoma do vírus e hoje a ciência permite saber se o vírus foi fabricado. O surto começou na China, onde é preciso mudar os hábitos alimentares. É um país com muita gente e onde as proteínas escasseiam. A sua história permite-nos concluir que o tipo de alimentação que fazem e o circuito alimentar, põem em risco a comunidade. Não é admissível que se vendam animais vivos em mercados de 50 milhões de pessoas. A promiscuidade entre pessoas e animais é um exagero e isso não pode continuar.

Como explica que os especialistas do Conselho Nacional de Saúde Pública (CNSP) tenham defendido que as escolas deveriam continuar abertas e as indicações europeias fossem contrárias?
O CNSP reúne especialistas de muitas áreas e cada um tem de defender a sua. Parece-me que a área da saúde não teve o peso suficiente para se impor à área da economia, quando a prioridade era salvar a nossa saúde. Não havendo todos os documentos legais para acautelar que não havendo aulas as pessoas ficavam em casa, se calhar, foi prudente esperar um pouco. Agora não se compreende que de um dia para o outro tenham mudado de opinião. Aquilo que me parece é que o CNSP não acautelou devidamente a saúde dos portugueses naquele momento. Parece-me que o CNSP esteve mal e não conseguiu explicar à população por que é que tinha tomado a decisão.

Concorda com o estado de emergência decretado?
Temos tido uma evolução exponencial e a maneira de travar a evolução exponencial é as pessoas ficarem em casa e não haver contactos. Não vejo outra maneira de o fazer. As pessoas não podem sair de casa, porque se o fizerem vão-se contaminar e se isso acontecer vamos ter uma carga nos serviços de saúde a que não é possível responder. As pessoas parecem estar a cumprir. Finalmente as pessoas interiorizaram a gravidade da situação. A situação é grave, mas não devemos entrar em pânico, porque os nossos avós já viveram situações tão graves ou mais que esta, com muito menos recursos, e sobreviveram. Ultrapassaram a gripe espanhola, que matou cerca de 1% da população, entre 65 a 100 mil pessoas. Se ultrapassaram naquela altura, hoje, com os recursos que temos, de certeza que vamos ultrapassar muito melhor.

Esta pandemia poderá servir para o Governo perceber que é necessário garantir mais médicos e meios no SNS?
Há muitos recursos humanos, a organização das coisas é que poderia ser diferente. No futuro, a saúde tem de ser reconhecida como uma área prioritária, porque poderemos ter a melhor economia do mundo, mas se não tivermos saúde acontece o que está a acontecer agora. A saúde é um pré-requisito para o desenvolvimento. Tem de haver investimento na formação, na progressão das carreiras, não só dos médicos, mas também dos outros profissionais de saúde. Temos de saber que se trabalharmos bem poderemos ter alguma progressão na nossa vida, caso contrário as pessoas não querem ficar no SNS e vão procurar outro local onde lhe dêem mais valor. Isso tem de ser equacionado. Os médicos têm uma carreira muito grande de formação e altamente diferenciada e isso tem de ser reconhecido.

Esta pandemia pode ter um lado positivo e contribuir para mudar hábitos?
Depois de vencermos esta pandemia as coisas não voltarão a ser como antes. Vamos ter muito mais cuidado em todo o lado. Só espero que os afectos não se mudem, porque os portugueses são um povo que gosta muito dos afectos, dos cumprimentos e dos abraços. Agora, as exigências com a higiene, com a etiqueta respiratória, penso que se interiorizou de uma vez por todas. É bom que as pessoas sejam exigentes em todas as áreas.

Tem-se falado sobre a possibilidade do vírus tender a desaparecer com a chegada do calor.
Temos países que estão a viver o Verão e que têm o vírus . Não me parece que seja muito válido. O que acontece é que no Verão as pessoas não estão tão próximas umas das outras, andam mais ao ar livre e a transmissão pode ser mais dificultada. Mas o vírus não desaparece.

Com as alterações climáticas, este tipo de pandemia pode tornar-se mais frequente?
Temos de olhar para isto de outra maneira: houve uma quebra da produção e a redução de muitos milhares ou milhões de toneladas de carbono. Temos de saber conciliar bem o desenvolvimento, a saúde e a estabilidade do planeta em termos ambientais. O planeta é só um e não é assim tão grande como se viu. A China estava longe e em menos de dois meses o seu problema replicou-se aqui.

 

Percurso
Um deputado a tratar da saúde pública
Rui Passadouro, 59 anos, é delegado de Saúde Pública no Agrupamento de Centros de Saúde do Pinhal Litoral e membro da Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos. Licenciado em Medicina, com a especialidade em Saúde Pública, realizou um mestrado em Gestão e Economia da Saúde, formação que tirou no meio de todo o seu trabalho e inúmeros cargos que ainda exerce. Com um vasto currículo, o presidente da Sub-Região de Leiria da Ordem dos Médicos integra a Comissão de Controlo da Infecção do Centro Hospitalar de Leiria. Integra como independente a bancada do PSD na Assembleia Municipal de Leiria, onde se tem batido por melhores cuidados de saúde na região.