Entrevista

Rita Pereira: “A maior parte das pessoas seguiu as regras de confinamento e senti que vivíamos num grande Big Brother”

3 jul 2020 09:43

Responsável por Ensaios Clínicos, fez parte da equipa que, no Reino Unido, fez o estudo do impacto da dexametazona, como medicamento para o tratamento da Covid-19. A terapêutica, embora promissora, não é ainda uma cura nem a garantia de tratamento. Neste momento, apenas a distância física e a máscara ajudam no controlo da pandemia

Rita Pereira, responsável por Ensaios Clínicos
DR
Jacinto Silva Duro

Qual foi o seu papel na validação dos resultados, no recente estudo da Universidade de Oxford que deu a conhecer a dexametazona, como medicamento promissor no tratamento de pessoas infectadas por Covid-19?
Sou farmacêutica hospitalar em Ensaios Clínicos. O estudo envolveu praticamente todos os hospitais distritais e centrais do Reino Unido e os estabelecimentos de saúde recrutaram doentes para o ensaio. Estive ligada à equipa de investigação que, no Ashford and St. Peter's Hospital Foundation Trust, estava a desenvolver o estudo. Por mim, passavam as medicações que tinham de ser fornecidas aos doentes e a escolha aleatória dos doentes que iriam receber a medicação. Este estudo foi suportado financeiramente pelo Departamento de Saúde Pública britânica, que estabeleceu que os ensaios clínicos de novas drogas terapêuticas, no combate à Covid-19, eram uma prioridade nacional.

A dexametazona, por mais promissora que seja, não é um tratamento eficaz a 100%. Segundo os resultados do estudo onde participou, este medicamente corta o risco de morte em 1/3 nos doentes nos ventiladores e, em 1/5 em quem está a ser tratado com oxigénio. Parece pouco, mas serão resultados melhores do que qualquer outra substância experimentada no tratamento da Covid-19.
Neste momento, os investigadores americanos estão com algum cepticismo quanto aos resultados, porque querem saber os detalhes do ensaio clínico. Isto porque, quando a pandemia apareceu, começou a haver algumas decisões clínicas que não eram baseadas em evidências científicas - testes ou medicamentos validados através de ensaios clínicos. Quando há um ensaio clínico, é necessário testar o medicamento, depois é preciso perceber os resultados e depois eles têm de ser escrutinados pela comunidade científica, que é o último passo que é preciso dar com a dexametazona. Apesar de a Universidade de Oxford ter comunicado que se tinha obtido estes resultados, é preciso vê-los em detalhe. Isto é, por exemplo, ver como este medicamento se comporta em grupos específicos de doentes, porque um dos efeitos secundários da dexametazona pode ser o aumento do nível glicémico e é preciso perceber como ela se relaciona com o subgrupo dos diabéticos. Isto demonstra que as decisões devem ser baseadas em factos provados e não em mitos. O que aconteceu, por exemplo, com a hidroxicloroquina foi que ela tinha efeitos práticos a nível laboratorial e extrapolou-se mundialmente a sua eficácia, apenas verificada em laboratório. Houve alguns pequenos ensaios clínicos, alguns nem sequer randomizados - atribuídos a alguns doentes ao acaso em grupos de tratamento - e foi o investigador a escolher quem eram os doentes a quem seria ministrada a substância. E, depois, houve algumas politiquices que a tornaram como medicamento mencionado em muitas orientações terapêuticas em vários países. O ensaio realizado no Reino Unido à hidroxicloroquina contou com mais de dois mil doentes tratados com esse medicamento, comparativamente a três mil que não o tomaram, isso permitiu que, ao fim de dois meses, se conseguissem resultados e se tivesse percebido que a substância não oferecia qualquer vantagem no tratamento dos doentes Covid.

Perfil
Uma profissional realizada
Rita Pereira nasceu em Leiria, cidade onde fez os estudos, mas ao fim do dia, regressava para o lar no Reguengo do Fètal, Batalha. Frequentou a Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo e, depois, licenciou-se em Ciências Farmacêuticas, na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Do seu currículo, consta uma passagem pela Farmácia de Oficina e outra pela indústria farmacêutica. Fez consultoria em Gestão da Qualidade e verificação das normas ISO, para entidades na área da Saúde. Em 2013, porque o marido estava a trabalhar no Reino Unido durante a semana e regressava a Leiria aos fins-de-semana, resolveu mudar a família para Ascott, junto a Windsor, em Inglaterra. Deixou o emprego e embarcou numa aventura em família. "A nível profissional, decidi enveredar por uma área diferente que nunca tinha experimentado em Portugal. Quando me relacionei com o campo de Farmácia Hospitalar surgiu-me a oportunidade de trabalhar em Ensaios Clínicos e agarrei-a. Neste momento, sinto-me completamente realizada."

Alargar os ensaios clínicos de novos tratamentos ao país inteiro é algo que Portugal também poderia fazer? É a minha opinião, mas é a de alguém que não conhece em detalhe a realidade portuguesa.
A comparação com o que vivo aqui faz-me ter pena que não possamos fazer o mesmo. Aqui, a maior parte da investigação de medicamentos e novas técnicas é feita a par com o Serviço Nacional de Saúde. Até as coisas simples como perceber qual a inclinação da cama dos doentes em risco de pneumonia por aspiração - quando os doentes estão deitados e são alimentados correm o risco de desenvolver essa condição. É uma cultura de medicina e terapias baseadas em evidências, que foi definida como sendo prioridade nacional. Aqui a investigação é uma prioridade e trabalha ao lado do SNS, onde estão doentes de todos os tipos e todos os géneros. Outra coisa que aqui é feita e que tenho pena de que em Portugal seja mais complicado, é a forma como o ensaio clínico é aprovado e posto em prática. É muito mais célere. A cultura relacionada com a investigação em saúde sente-se ao nível mais básico de um hospital distrital do Reino Unido.

"As regras de distanciamento físico e a máscara, usada correctamente, podem contribuir bastante para que possamos aligeirar as regras e colocar a economia em movimento"
Rita Pereira

Até agora, Portugal teve comparativamente poucos casos de Covid-19 e poucos óbitos, e, talvez por isso, muitas pessoas desvalorizam a doença. Mas, o Reino Unido, tal como a Espanha e a Itália, não teve tanta sorte. Como foi viver aí esta pandemia?
Estar na linha da frente tem sido uma experiência muito motivadora. Apesar de terem existido algumas indecisões políticas no início, referentes ao confinamento que foi decretado tarde de mais. A primeira opção foi a de tentar seguir um caminho parecido com o da Suécia, com uma liberalização maior dos movimentos das pessoas e um apelo à consciência individual em vez de medidas obrigatórias. Depois, houve um volte-face e tivemos um confinamento obrigatório, com regras rígidas. Não senti muito esse período porque deixava a família fechada em casa e continuei a trabalhar. No ambiente hospitalar, houve alguns problemas que foram comuns a quase todos os países afectados na Europa. Houve uma reorganização completa dos hospitais, com duplicação de capacidade de cuidados intensivos em menos de 48 horas. Com receio de que os hospitais ficassem sobrecarregados, construiu-se o hospital de campanha Nightingale que ficou praticamente pronto em duas semanas, com capacidade para 500 doentes ventilados e que nunca chegou a ter mais do que 40, mas não deixou de ser uma segurança. Houve falta de equipamento de protecção, tal como aconteceu em It&a

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