Entrevista

Henrique Oliveira: Modelos matemáticos dizem que ainda não é seguro desconfinar totalmente

20 mar 2021 11:55

Matemático e professor no Instituto Superior Técnico explica o papel da Matemática na previsão dos números da pandemia e a ligação entre esta disciplina e outras, como a Música. “Tudo é Matemática”, garante, acrescentando que é uma disciplina que envolve pensamento criativo

"A Matemática tem sempre um bocadinho de arte"
Ricardo Graça
Raquel de Sousa Silva

Está a trabalhar em temas como a selecção e sobrevivência de espécies. Como é que uma espécie pode ter sucesso quando invade o espaço de outra?
Há diferentes estratégias naturais de o fazer. Uma é através do crescimento rápido, explorando os recursos abundantes; outra é especializando-se e diversificando-se, como faz o ser humano. As espécies que assentam o seu crescimento na multiplicação têm muito sucesso em períodos de grande abundância, mas só exploram um recurso. São espécies muito primitivas do ponto de vista evolucionário. As outras, que têm uma entropia evolucionária alta, são muito resistentes e conseguem explorar todos os recursos. São menos específicas, mas mais inteligentes. Na evolução, há sempre um conflito entre estas duas espécies. De um lado os vírus e os insectos que proliferam em certas alturas do ano, de outro espécies como o rato e até a barata, que consegue sobreviver em múltiplos ambientes e é um dos insectos mais inteligentes, até se finge de morta.

Como é que a Matemática é usada nesses estudos?
Conseguimos estudar a evolução das espécies utilizando teoremas matemáticos e matematização da realidade. Há matrizes que nos dão o crescimento da população, a mortalidade, a natalidade. Todos estes cálculos são Matemática. Também o conceito de entropia evolucionária, que usamos nestes estudos, é Matemática. Foi inventado por Lloyd Demetrius, professor de Harvard com o qual estou a trabalhar. Ainda não publicámos nenhum paper, mas estamos muito avançados nos nossos estudos. Descobrimos, por exemplo, como é que funciona a sensitividade da entropia evolucionária quando se mudam os coeficientes do meio.


O que significa mudar os coeficientes do meio?
Tomemos como exemplo a sardinha. Se mudarmos a corrente, se as águas ficarem mais frias, o que lhe acontece? Quais os parâmetros que afectam mais a entropia evolucionária da sardinha? Se o número de crescimento for abaixo de um, a espécie extingue-se, se for acima de um, a espécie prolifera. Nas doenças é igual. Isto também tem a ver com bifurcações de equações diferenciais.

O que são essas bifurcações?
São alterações das soluções dos modelos com equações diferenciais, tal como os da epidemia, que medem a multiplicação dos vírus, a proliferação do número de infectados, o número de mortes. Tudo isto recorre a equações diferenciais. O objectivo destes modelos é mudar um parâmetro de forma a que haja mudanças. Por exemplo, no caso da pandemia, mudar um aspecto para que o número de infectados não cresça e passe a diminuir. Estudar bifurcações de equações diferenciais é estudar alterações dos parâmetros exteriores que façam com que as soluções em vez de terem um comportamento passem a ter outro.

São estes modelos que têm sido usados para ajudar a prever a evolução da pandemia….
Sim. Fala-se muito do Rt [número de reprodução efectivo em função do tempo], do R0 [número básico de reprodução], e de imunidade de grupo. O que é esta imunidade? Corresponde ao equilíbrio de uma equação diferencial. Uma coisa que parece tão distante da Matemática, que é uma fórmula, obtém-se olhando para as equações diferenciais. Tem de haver uma colaboração estreita entre os médicos e os matemáticos.

A partir de que percentagem de vacinação poderemos ter imunidade de grupo?
O R0 varia de país para país. Há uma grande confusão quando se diz que devemos usar modelos de outros países, como a Suécia. O R0 depende de muitas coisas, como a densidade populacional e a matriz cultural. Nós passamos a vida a dar beijinhos e abraços e os suecos não. Não faz sentido usar cálculos iguais para países diferentes, nem sequer para diferentes regiões do mesmo país. Temos comportamentos e serviços de saúde muito distintos. Quanto à imunidade de grupo, só se atingirá com mais de 75% da população imunizada. Isto porque o nosso R0 deve andar acima de quatro e as variantes do coronavírus são como se fossem uma espécie nova, que toma o lugar da anterior, pelo que o R0 já não é o da primeira variante. Para as novas estirpes, é 30% a 40% maior. Neste momento, estamos com uma força de infecção – que é o que produz novos casos – parecida com a de Outubro. Nem as vacinas nem a doença conferem imunização a 100%. Por isso, só estaremos seguros com a vacinação a um nível de 80 ou 85% da população.

O número oficial de infectados está muito abaixo do número real?
Há muita gente que já teve a doença sem saber. Isso pode ser estimado, e a Matemática serve para isso. Por cada caso conhecido, há dois não conhecidos. Há as 800.000 pessoas dos números oficiais, e depois devemos andar pelos 2,3 milhões que não sabem que estiveram infectadas. Mas ainda estamos longe da imunização de grupo.


O desconfinamento começou no início desta semana. Os números dão-nos tranquilidade para desconfinar?
Não. Explico porquê. Ainda estamos com incidências de 500 a 600 casos por dia. Associa-se incidência ao número de novos casos, mas o que estamos a ver de novos infectados corresponde à incidência de há oito ou nove dias, altura em que as pessoas foram contagiadas. Este número começou a descer muito depressa, mas já não está a descer assim tão depressa. Estamos a aproximar-nos de uma situação em que já não é possível, com os meios ao nosso dispor, baixar muito mais a incidência.

Porquê?
As pessoas estão muito saturadas da epidemia e começaram a desconfinar de forma informal. Há um factor muito importante, que temos nos modelos, que é o medo. Quanto mais casos, mais filas nos hospitais, mais mortes, mais as pessoas respeitam o confinamento, mesmo sem o Estado o decretar. Começam a isolar-se e a ter cuidados. Quando os números baixam muito, começam a relaxar. É o que tem estado a acontecer. A taxa de multiplicação diária da doença está em 0,95. A continuar a este ritmo, os novos casos poderão de novo voltar a crescer, em vez de diminuírem, o que com o desconfinamento pode ser uma semente da quarta vaga. Desconfinar agora, sobretudo nas escolas, única defesa que tínhamos, fará os novos casos subir um pouco mais depressa. E com a Páscoa, sem respeitarmos as regras, poderá ser pior. Temos de ser muito cuida

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