Opinião

Letras | Sobre a futilidade das artes

12 abr 2024 17:15

Mas há o reverso da medalha... que me faz pôr tudo em causa... quando há milhares de pessoas a dormir ao relento numa qualquer cidadezinha letrada e cosmopolita, mas fechamos os olhos, quando o mundo está em guerra mas deixamo-nos mudar de canal

Escrevo hoje após três dias de formação imersiva, na Fundação Calouste Gulbenkian, sobre pensar o “pensar dos artistas” , e de como a inspiração no seu modo de fazer pode ser uma mais valia no campo da educação. “Pensar Como Um Artista”... este era o desafio e a proposta seria inspirarmo-nos nas suas metodologias de trabalho, no desenvolvimento de projetos, em particular nos que se prendem com a educação... e a educação é, ou deveria ser o fermentar a cidadania e a inclusão e a resiliência e a proatividade e a criatividade e o olhar atento e o cuidar. Foram dias em que professores, mediadores, curadores, e pessoas diversas de outras profissões se juntaram para partilhar e aprender sobre pedagogia invisíveis de todos os dias e que convidam a pensar, a desenvolver o pensamento crítico e divergente, e a olhar à volta tecendo opiniões sobre temas acutilantes, ou como gosto de lhes chamar fraturantes de todos os dias. Momentos que mesmo fechados numa sala nobre, dum espaço de privilégio, poderão ser pontos de partida para difundir espaços ágora nas escolas ou nas comunidades, que promovam diálogos horizontais e espaços seguros para a reflexão e para a partilha de ideias sem lugar a julgamentos e onde a pluralidade seja a palavra de ordem. Momentos de questionamento, mas de sonho e utopias de novos futuros, contributos para uma formação holística e de pé regado.

Escrevo também após a realização de um Congresso em Leiria que visou pensar os caminhos das artes na educação, na intervenção social, na mediação e nos processos de participação cidadã. Não as artes como panaceia para todos os males, mas como indutor de espaços de questionamento e de olhar disruptivo numa normatividade que grassa e que é cada vez mais a norma. Sim, porque ainda acredito que a experiência com as artes nos devolve a relação com o belo, com o bom, connosco e com o outro, mas também com o feio, ou com o mau, ou com o que nos causa estranhamento. E isso é bom. E amplia-nos e faz-nos crescer. E transforma-nos.

Mas há o reverso da medalha... que me faz pôr tudo em causa... quando há milhares de pessoas a dormir ao relento numa qualquer cidadezinha letrada e cosmopolita, mas fechamos os olhos, quando o mundo está em guerra mas deixamo-nos mudar de canal, ou quando continuam tantas situações de violência gratuita e barbara em tantos outros contextos... mas não é da nossa conta, ou, e isso futilmente e de somenos importância, deixa-me petrificada, quando há mães e pais e professores e tantos mais na escola a dizer... que isso das artes e dos projetos é muito bonito, mas sempre quero ver depois nos exames e nos resultados, ou que falar sobre uma banda de rock n’ roll, que por acaso até tem uma atitude fortemente ativista e detonadora de dedos na ferida, não faz sentido em contexto escolar, ou quando a educação visual continua ser “ensinar a desenhar”, muitas vezes premiando competências que não foram adquiridas na escola, em vez de estimular a criatividade e promover literacias e auto-estimas, e pensamento crítico... e os afetos... ai os afetos...

E nisto tudo há dúvidas, muitas, que me vão ressoando todos os dias e em catadupa... No meio desta espuma amarela dos dias, talvez esta minha valorização dos processos das artes, que para mim são vida, na vida de todos os dias, seja como que uma “futilidadezeca”, minha e de uns tantos como eu... algo que nos ajuda a iludir e a passar o tempo... como um conjunto de reels com que me nos vamos entretendo, a fingir que acreditamos que o nosso trabalho e aquilo em que acreditamos ainda servirá para regar ou adubar os pés de alguma coisa... Talvez seja esta a futilidade das artes.