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Telmo Rodrigues: "Alguma da melhor poesia dos últimos 70 anos está na música pop"

21 out 2016 00:00

O investigador de Leiria defendeu no ano passado uma tese de doutoramento que estuda a obra de Bob Dylan no contexto literário.

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Em que circunstâncias começou a estudar a obra de Bob Dylan?
A minha intuição inicial quando comecei era que alguma da melhor poesia dos últimos 70 anos está na música pop. Mas isto levanta uma série de problemas técnicos. Desde logo, o que é um poema? A poesia, originalmente, não era editada nem escrita, era cantada. É só a partir do Renascimento que se começa a separar música e poesia. 

Daí o tema da sua primeira tese.
O meu primeiro tema é este: podemos considerar uma canção um poema ou não? 

E podemos?
Claro. Na Grécia não havia poesia sem música, era tudo cantado. Aquilo que nós hoje chamamos poesia nasceu dessa separação, mas há uma tradição que continua na oralidade, nas baladas, e que foi recuperada no final do século XVIII, princípio do século XIX, com os romantismos. Ora, o Dylan faz parte desta tradição oral. É fácil dizer que ele é um poeta, nesse sentido.

Quando chega ao doutoramento, passa para outra análise.
Exactamente. O Dylan há muitos anos que é estudado em universidades, principalmente americanas. Mas, quando entra numa faculdade portuguesa, vem através da cultura pop. Isto já é denegrir o Dylan e eu acho que ele tem que competir com os melhores, tem que estar ao lado do Phillip Larkin, um dos melhores poetas do século XX. Portanto, não me interessa a defesa historicista, porque é relativamente óbvia, o que quero é analisar a obra e pensar se resiste à análise que os grandes poetas do século XX têm tido. E acho que resiste.

A restauração de uma certa nobreza da literatura oral, pela atribuição do Nobel a Dylan, é o menos interessante?
É o que tem menos interesse. O problema aqui é que há uma série de erros quando se diz que o Nobel é bem entregue. O primeiro erro é achar que se passa uma letra para o papel e aquilo é um poema. Eu acho que uma canção do Dylan só é um poema quando é cantada pelo Dylan. Há uma relação muito próxima entre ouvir uma canção e aquilo ser um poema. Se tirar a música, deixa de ter aquilo que torna o Dylan único. O que o Dylan faz, com a voz dele, é o que os melhores poetas fazem na escrita. Por isso, quando as pessoas dizem que a voz do Dylan não presta, isso é tudo treta. A voz do Dylan só tem comparação com o Sinatra. Tem intenções escondidas.

No doutoramento faz essa comparação com os melhores.
A minha tese parte do princípio que há poesia na música pop. E tem um quarto da tese sobre Dylan, que é realmente o melhor deles todos. O escritor americano Jonathan Franzen disse qualquer coisa como o Dylan ganhou, para o ano pode ser o Morrisey. E estava a ser sarcástico. Mas isto é verdade. O Morrisey é um dos candidatos, aliás, ele tem uma tradição poética muito peculiar e interessante que vem naturalmente da sua relação com o Oscar Wilde e com dois poetas britânicos muito importantes do século XX, que são Phillip Larkin e John Betjeman.

Já seria nobilizável em qualquer circunstância.
Exactamente. Se nos abstrairmos dos problemas técnicos do que são poemas ou não, só é possível tratar Morrisey ou Dylan da maneira que se tratam outros poetas. 

Quando propôs as hipóteses de trabalho, quais foram as reacções?
O facto é que tive a sorte imensa de me cruzar com os professores certos. Aceitaram isto imediatamente.

Mas essa não é a corrente dominante nas universidades.
Sim, mas, mais uma vez, há dois pontos. Alguém disse que aceitava este prémio porque o Dylan é um compósito entre literatura e artes performativas. Tudo treta. Há um conjunto de pessoas para quem isto não é um problema. Uma das mais importantes é o Christopher Ricks, que dedicou parte da vida dele a estudar o Dylan. 

A escolha da academia sueca acaba por ser mais surpreendente para o cidadão comum, que não está tão atento a estas coisas?
Naturalmente, mas houve uma série de reacções de pessoas do meio académico que não são justificáveis, e escritores. Posições que não são aceitáveis, de um provincianismo que não se entende. Talvez o mais triste seja as pessoas dizerem: tudo bem, o Dylan recebeu o Nobel, mas havia outros. Não há outros. 

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