Sociedade

Sara Araújo: “temos de desconstruir a imagem de que não somos um país racista e que temos ‘brandos costumes’”

21 mar 2019 00:00

Entrevista | “Fiquei orgulhosa por ver que a minha universidade e que as pessoas do meu País, presentes na contramanifestação para defender os valores da democracia e a favor do Jean Wyllys eram muitas mais do que as do PNR”

Jacinto Silva Duro

Recentemente, a presença de Jean Wyllys na Universidade de Coimbra provocou a convocação, pelo partido de extrema-direita PNR, de uma manifestação contra o ex-deputado brasileiro, acontecendo mesmo uma agressão contra o ex-parlamentar, numa agressividade a que não estamos habituados em Portugal. Onde está o povo acolhedor e de bandos costumes?
Essa é uma questão que precisamos desconstruir. No CES e em outros lugares, uma das coisas que se tem vindo a desconstruir é a ideia de "povo de brandos costumes", que foi alimentada pelo mito do luso-tropicalismo, isto é, a ideia de que o colonialismo português foi brando, diferente e de que os portugueses têm maior capacidade de miscigenação. Foi uma ideia que ajudou a manter o império colonial até tão tarde e é bom que seja desconstruída. Alguma desta extrema-direita mais musculada que está a aparecer tem vários incentivos, embora ninguém saiba muito bem o que está a acontecer. Durante muito tempo, não se antecipou um Trump ou um Brexit, não se antecipou uma destituição [de Dilma Rousseff] no Brasil ou um Bolsonaro. A força da extrema-direita e o que aconteceu com a vinda de Jean Wyllys a Portugal tem muita influência da realidade brasileira e do que se tem vindo a assistir no resto do mundo. Se a partir de Portugal, uma força de extrema-direita, como o PNR, que se achou sempre que não teria muitas hipóteses para crescer, como acontece com movimentos semelhantes noutros países, começa a ter comportamentos mais "musculados" é porque tem espaço e oportunidade para o fazer. Essa é a primeira questão, mas há outra que também é importante. Não é só a extrema- direita que está a aparecer mais, isto é também reacção a uma discussão que começa a aparecer em Portugal e que tem de ser feita! É importante percebermos quem somos, desconstruirmos as imagens que existem acerca do País e que não são verdadeiras. Temos de desconstruir a imagem de que não somos um país racista e que temos “brandos costumes”... Há muitas vozes que, durante toda a nossa história, foram silenciadas, como as dos movimentos de afro-descendentes... pessoas que estão a reivindicar que a sua narrativa histórica seja ouvida e que começam a ter influência na História que é contada.

Leia aqui a segunda parte da entrevista:
“Quantos pais acham normal um filho brincar com uma boneca?”


Isso pode provocar reacções...
Num primeiro momento, mas não me parece que seja uma coisa, só por si, negativa. Obviamente, não me estou a referir aos episódios de violência. Estive recentemente com Mamadou Ba e ele disse que, por mais que lhe tenha pesado tudo o que aconteceu na sequência da intervenção policial no Bairro da Jamaica e da cobertura mediática que foi dada ao caso e à manifestação feita na Avenida da Liberdade - e ele foi ameaçado e sofreu consequências por ser o porta-voz desses movimentos -, o que é certo é que permitiu discutir um assunto que os portugueses e as portuguesas não gostam de discutir, porque, alegadamente, “não somos um país racista”. Quando se diz que Portugal é um país racista, não se está a afirmar que os portugueses são todos racistas, mas que existe uma estrutura social que o é. Uma estrutura que atravessa as instituições, que atravessa o País, que nos atravessa muitas vezes. É uma construção... Todos aprendemos os Descobrimentos, todos aprendemos a Guerra Colonial, mas não aprendemos as narrativas das Lutas de Libertação. Aprendemos a História do lado de quem tem poder, do lado dos colonizadores, mas não aprendemos a História a partir das perspectivas de quem sofreu e resistiu à violência. O que tem vindo a surgir são outras vozes, outras narrativas daquilo que somos e daquilo que foi a nossa História, e é óbvio que isso irrita o PNR... Olho para esse grupo e não parecem ser mais do que eram há uns anos. Na conferência com o Jean Wyllys, o atirar dos ovos aconteceu lá dentro e não na rua, onde as coisas foram mais agressivas. Mas fiquei orgulhosa por ver que, na minha universidade, no meu País, a pessoas na contramanifestação a defenderem os valores da democracia e a favor de Jean Wyllys eram muitas mais do que as reunidas pelo PNR.

No panorama político, estamos a assistir a uma polarização entre direita e esquerda, entre certo e errado, entre bom e mau. Acabou a moderação e os encontros a meio do caminho?
Há várias coisas em causa no fenómeno da polarização e, naquela que acontece entre esquerda e direita, há muito espaço para o populismo. O modelo capitalista neoliberal está a falhar e em crise. E não é uma crise temporária. Toda a gente o sabe. O modelo está esgotado. Todas as promessas que fizeram à nossa geração e à que vem depois de nós estão a falhar. Todos tivemos mais oportunidades do que os nossos pais e os nossos filhos não terão mais do que nós, pelo contrário. Tivemos acesso a uma escola pública de qualidade... A Educação e Saúde públicas são das coisas que mais me preocupam neste momento. Quando vejo o descontentamento e a desmotivação dos professores e das professoras, o desprestígio do papel dos docentes do ensino secundário, fico assustada. É no ensino secundário que começamos a pensar criticamente e não devemos apenas ler e interiorizar. Diz-se que as crianças não lêem, mas as pessoas têm acesso a informação produzida em todo o mundo e, se calhar, mesmo não lendo livros inteiros, estão a ler outras coisas. O que é preciso é que aprendam a ler criticamente e temo que isso não esteja a acontecer! Este modelo capitalista neoliberal está a falhar e, simultaneamente, dizem-nos que não há alternativas, veja-se o discurso da Troika em Portugal. Qualquer pessoa ou movimento que apareça agora a dizer que tem uma alternativa válida, consegue aproveitar-se da fragilidade dos cidadãos para uma manipulação emocional dessa vulnerabilidade. É o que o populismo faz. Coloca-nos a "nós" contra "eles" e há pouco espaço para se ser moderado. As pessoas sentem que "isto está mal" e que alguma coisa mais radical tem de ser feito, seja à esquerda ou direita.

Também há polarização entre etnias como se viu no Bairro da Jamaica.
A polarização entre brancos e negros sempre existiu, mas para quem vive no lado do privilégio é possível só agora se ter apercebido dela. As redes sociais tiveram um papel importante nisto e é muito fácil ver alguém, de classe média e branco, a questionar se não estamos a polarizar as questões entre negros e brancos. Não, não estamos! Sempre existiu o outro lado. Por exemplo, a questão da gentrificação... até parece que é uma coisa nova, mas perguntem a um cigano se é nova, perguntem a um imigrante da periferia de Lisboa. Houve sempre pessoas que jamais tiveram um lugar no centro da cidade. Só passou a ser um problema, a partir de 2011, com a crise e a entrada da Troika, quando apareceu uma série de problemas que uma parte da  

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