Opinião

Renascer das cinzas

19 out 2017 00:00

Faltam palavras para descrever o inferno que Portugal viveu no último domingo, com as chamas de regresso a aprofundarem a ferida, ainda bem aberta, de Pedrogão Grande e a mostrarem-nos toda a nossa impotência e pequenez.

Para os crentes das profecias mais catastróficas, “O Dia” tinha chegado, com o imenso “dilúvio de fogo” a abater-se sobre os pecadores, como há muito ‘sabiam’ que, mais cedo ou mais tarde, iria acontecer.

Para os que têm a cabeça limpa desse tipo de premonições da ‘banha da cobra’, foi apenas a consequência de décadas de erros acumulados e de muita negligência, a que se juntaram, com maior ou menor organização, mãos criminosas, que não se perdia nada se tivessem ido com as cinzas das milhões de árvores ardidas.

Tal como os temerosos de Satanás, também as pessoas mais esclarecidas sabiam que uma tragédia desta natureza aconteceria, mais cedo ou mais tarde. Não por qualquer tipo de premonição, mas pelo que era possível observar e perceber.

Décadas de desrespeito pela natureza, de ausência de política florestal, de subjugação aos interesses económicos das papeleiras e a colocar-se os interesses particulares à frente dos da comunidade, não augurava nada de bom, não tendo havido sequer a inteligência de dar crédito aos sinais que, ano após ano, iam mostrando a fragilidade do nosso território face ao poder do fogo.

Tudo o que foi feito não passou de paliativos, a maior parte dos quais anulada pelos erros que se continuaram a cometer num território completamente desordenado, onde a Lei parece nada valer, seja na limpeza das matas, seja na distância das árvores às estradas e habitações, seja na própria construção de casas e empresas onde bem se entende, numa lógica de que a licença há-de aparecer.

Com tamanha tragédia, chegámos agora a um ponto em que é impossível continuar a assobiar para o lado como se nada se passasse, pois nem o tempo conseguirá fazer esquecer o drama vivido, como, infelizmente, tantas vezes acontece.

Agora terá mesmo que se fazer o que o que há muito se anda a adiar. Terá que se intervir na floresta, doa a quem doer, colocando quem sabe do assunto à frente do processo e deixando para os políticos apenas a parte da formalização. Também as nossas forças de combate merecem uma reflexão, sendo tempo de acabar com o amadorismo e desorganização com que os bombeiros se apresentam muitas vezes perante as chamas.

Apesar da boa vontade e de todo o louvor que merecem, é insuficiente face aos riscos que estas situações oferecem, quer para os próprios quer para as populações. Um País com a área de floresta que Portugal tem necessita de forças profissionalizadas, bem treinadas e equipadas, assim como meios de apoio, sejam terrestres sejam aéreos, à altura das exigências.

É tempo de o Estado deixar de andar a ‘brincar com o fogo’, sendo mais que altura de assumir o seu dever de proteger as pessoas e, já agora, de pedir desculpa pelo que aconteceu a todos os que sofreram com a tragédia. Apesar do momento de dor, é também tempo de todos nós olharmos para a frente e pensarmos de que forma poderemos contribuir para, literalmente, fazer renascer a nossa floresta das cinzas…

*Director do Jornal de Leiria