Opinião

O meu Avô chamava-se Nuno Ribeiro. Eu não fui ao seu funeral

26 jun 2017 00:00

A memória mais forte que tenho do meu Avô é dele sentado à sombra, de cajado na mão, depois de um almoço de familia no “restaurante” que a minha Tia Rosa explorava no Verão à beira do Tâmega.

O meu Avô gritava com os miúdos que por ali corriam feito loucos, a perturbar-lhe a sesta. Por vezes, o meu Avô lá acertava uma pequena paulada e fazia corar as mães dos miúdos que lhe vinham pedir satisfações, com as palavras que ele tão bem escolhia . Estávamos em Mondim de Basto, Trás-os-Montes.

É bem verdade que a Educação percorreu um longo caminho desde os anos Oitenta. Os paradigmas mudaram por completo. Agora que sou pai, não me consigo ver avô num canto, à beira Tamêga, com um pau a gritar a quem passa.

Mas antes que comecem a pensar que o meu avô era um bruto, algum contexto. A família do meu Pai vem do Nordeste de Portugal. Uma região atormentada durante muitos anos pelo fome, pelo frio, pelos refugiados da Guerra Civil de Espanha, pela exploração mineira.

Era um sítio duro como rocha, agreste, talvez. Afastado das cidades do litoral que gozavam de outro tipo de prosperidade.

As pessoas como o meu Avô também elas eram como que esculpidas da pedra que os rodeava nos altos das fisgas. As suas atitudes, eram, na maior parte das vezes, mecanismos de sobrevivência em tempos difíceis.

Penso que foi esta resistência empedernida que nos permitiu o grau de civilização de que desfrutamos agora. Há três, quatro gerações antes da minha (a de Setenta) começaram-se a criar condições de subsistência e segurança que viriam a ser fundamentais no futuro que agora vivemos.

Tudo isto, sob o manto negro da ditadura, das mortíferas guerras, do jugo total e absoluto dos senhores e dos proprietários que juntamente com o Estado tentavam manter o povo dominado.

A outra memória que tenho do meu Avô de Mondim foi ele a chorar e a gritar o nome da minha Avó (Madalena) da janela do seu apartamento de habitação social. Por ordens médicas, ele não pode acompanhar o cortejo fúnebre.

A familia também não queria que ele sofresse mais, mas ao vê-lo gritar daquela maneira da janela continuo ainda a pensar se essa foi uma decisão certa.No final, o que ficou foi a impossibilidade de o meu Avô se despedir da mulher que lhe deu 11 filhos (dois morreram, nove sobreviveram, incluindo o meu Pai) e uma história de amor e cumplicidade vivida numa dureza que só podemos imaginar. 

O meu Avô morreu pouco depois. Acontece com muitos casais idosos. Acredito que morram de vazio. Ultrapassa-me o fenómeno, mas sempre me pareceu como uma derradeira prova de amor. A absoluta culminação do companheirismo, um desejo tão forte que os leva à procura um dum outro, seja onde for.

Apesar de eu viver a 600 quilómentros da terra do meu Avô, visitámos Mondim no Verão muitas vezes. A família do meu Pai tinha um carinho especial por mim porque eu era muito parecido com o meu Avô.

Tal como o meu filho agora é muito parecido com o meu Pai. Verdade seja dita, aproveitei-me muitas vezes disso. Serviam-me o maior panado, nunca me ralhavam. Não interessava o que fazíamos, quem verdadeiramente éramos. Éramos familia. 

Apesar da intermitência e de uma estadia em “Lisboa” (que o meu Avô odiou a todo o momento), apesar da distância, acho que foi criado um elo entre nós, consolidado pelas historias que o meu Pai contava.

Todos achamos que os nossos pais exageram com a história da “sardinha para 11” ou os “quilómetros descalços na neve” mas a verdade é que os tempos eram outros e queria aqui demonstrar que essa infância de pedra e ferro não foi em vão.

Tudo o que somos, o que temos, nasceu das idas madrugadoras à resina dos nossos pais; ou das vindas tardias para casa depois de “irem ao minério”. E se tivermos apetência pelas Letras e Artes, devemos ouvir e relembrar as histórias desses tempos como um legado que temos obrigação de proteger.

Os meus primeiros contactos com o folclore Português foram através dessas tradições orais. Dos encontros com as bruxas à vinda do minério aos homens-carneiros que abriam as regas para estragar as plantações, sempre fui um privilegiado em ter na família pessoas que viveram e me contaram esses tempos. 

Devemos muito a quem nos gerou. Aos nossos anciões. Ao meu Pai. Ao meu Avô-Lobo. Ele não foi um guerreiro, um escritor famoso, um musico de talento. Mas foi um homem da sua época. Foi ele mesmo.

Acho que vão encontrar semelhanças na foto. Eu espero que essas semelhanças não se fiquem pela imagem. O primeiro passo de um Homem é compreender os Homens que o fizeram.

O meu Avô chamava-se Nuno Ribeiro. Eu não fui ao seu funeral porque estava a tocar num concerto.

Mas as memórias não ardem. 

*Músico e vocalista dos Moonspell