Opinião

Direito natural.

22 jul 2017 00:00

À partida, o suicidio de Chester Bennigton (vocalista dos Linkin Park) e as afirmações de Gentil Martins acerca de Cristiano Ronaldo e da homosexualidade ao Expresso, não estão relacionados. Não têm nada a ver. Mas será isso verdade?

Creio que há uma doença que invade o mundo. Uma epidemia  que não ataca o corpo, mas a mente, decretando, muitas vezes, o fim da nossa existência terrena. Essa enfermidade ainda não tem nome. Ou então tem tantos nomes que não lhe conseguimos atribuir um só. Os ingleses têm uma palavra que acho que funcionaria: Entitlement, mas é de difícil tradução.

Os sintomas dessa doença são vários mas radicam todos num estado de alma. Numa convicção que é silenciosa. Mas que avança por dentro e corrói a sociedade. Se eu tivesse competência para tal, escreveria como diagnóstico: esta pessoa sente-se muito melhor do que a outra. E não o consegue evitar.

Gentil Martins é, provavelmente, mas só provavelmente, um homem que deu mais à sociedade do que Cristiano Ronaldo. Efectivamente, salvou mais vidas e incontestavelmente contribuiu mais para um verdadeiro progresso social do que Ronaldo.

O seu campo de acção (a medicina), no qual fez história, assim o exige. Não é um desportista. Não mexe com as emoções das pessoas como um atleta, mas faz e, acima de tudo, fez a diferença quando a questão é a mais séria de todas: a vida ou a morte.

Os seus pacientes e quem beneficia do seu legado e obra, terão muito a agradecer ao médico e, - porque não? - à pessoa. Tudo isto é verdade. Mas será que tudo isto é evidência de que ele é melhor pessoa do que Cristiano Ronaldo? Ninguém o pode realmente dizer, muito menos o próprio.

O Chester Bennington era uma pessoa de sucesso. A sua banda, da qual eu não gostava nem um bocadinho, influenciou toda uma geração de fãs e outros músicos. Isso é evidente, também. Na parte familiar, ao que parece, também tinha sucesso, tendo deixado seis filhos e uma mulher. Suicidou-se na semana passada. Um mistério.

Esse seu último acto, desencadeou uma reacção gigantesca. A geração da sua banda é a geração online. Não podia ser de outra forma. Os seus fãs sentem a falta dele e daquela presença que sendo invisível aos olhos, nos acompanha no nosso quarto quando precisamos de alguém. De algo. De música. Essa é a reacção que lhe faz justiça.

Do lado negro, chegam os doentes. Os melhores do que todos. Os que foram, com as suas palavras, matando, lentamente, este e outros ídolos. Não eram poucos. São cada vez mais. Os que não compreendem como um pai deixa seis filhos.

Os que não têm simpatia pela depressão, clinicamente comprovada, mas nunca respeitada pelas massas. Os que fazem memes com forcas. Os que condenam o suicídio sem olhar ao que o precede. Os que fazem da Humanidade, um lugar triste para viver.

E quem são eles? Somos todos nós.

O vizinho do lado, o punk da esquina, a senhora das limpezas, o homem de negócios, a professora, o politico. Eu, tu, ele, nós, vós, eles. Todos estamos infectados com o sentimento de que o mundo nos pertence.

Que não faz mal deixar a merda de cão na relva onde as crianças jogam à bola. Os que atropelam pessoas nas passadeiras de Alcobaça e não se dão como culpados. Os que dão a ordem ao drone: os que carregam no botão. Eu, que tantas vezes julgo e acho que faço melhor. Só porque me sinto melhor do que o outro.

As pessoas que se ofendem online e que não tem reservas em nos chamar filhos da puta, paneleiros, cabras. Os que acham que as figuras “públicas” não podem responder ao puro ódio, como se da notoriedade dependessem direitos ou deveres. Os que matam impunes com palavras, montagens, roubos de propriedade intelectual, de identidade, de conhecimento.

Tudo está ligado hoje e o mundo assa no fogo lento da mediocridade virtual. O ambiente de ódio, falsidade e de impunidade. Se juntarmos pedaços de vidro suficientes, conseguimos fazer uma arma letal.

O verdadeiro ódio tem rastilho curto e em breve explodiremos com o que havia de decente em todos nós: o peso necessário da verificação que em nada somos melhor do que os outros e não podemos reger a nossa vida por esse doente sentimento ou “direito natural” à verdade das coisas.

*músico e vocalista dos Moonspell