Sociedade

Cuidado com a língua!

30 out 2015 00:00

Corrige os outros sempre que dizem “ter aceitado” ou “ter pagado” para “ter aceite” e “ter pago”? Fique a saber que é você quem está errado. Ter aceitado e ter pagado são as formas correctas de conjugar o verbo nesta frase, que conta com o auxiliar Ter

"Sim, os livros folheiam-se e não se “desfolham”. Isso seria arrancar as folhas" (Foto: Ricardo Graça)
Foto: Ricardo Graça
Foto: Ricardo Graça
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Jacinto Silva Duro

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Quando alguém diz mais bem corrige para melhor? Há a possibilidade de o erro ser seu. Sim. Pode ficar revoltado com a sua professora da primária que o fez passar a sua vida inteira convicto de que estava certo e afinal, está errado. Afinal, quem estava errada era ela, que tantas reguadas e castigos lhe administrou.

Não será surpresa para ninguém saber que damos todos os dias erros na oralidade e na escrita. O que é surpreendente é apercebermo-nos dessas incorrecções plasmadas na imprensa, publicidade e internet e, pior, gravadas a fogo na nossa mente.

“Quando o advérbio bem modifica um verbo, recorre-se à forma irregular melhor – comi bem, mas amanhã comerei melhor – mas, junto a adjectivos terminados em -ido ou -ado e que advêm de verbos, usa-se a forma regular mais bem”, diz Sandra Duarte Tavares, autora do livro 500 Erros Mais Comuns da Língua Portuguesa.

Veja estes exemplos: “o João é o candidato mais bem colocado para o cargo” e “o João é o candidato melhor colocado para o cargo”. Qual das afirmações está correcta? Se disse a primeira, acertou. Se disse a segunda… explicamos outra vez.

Os comparativos sintéticos de superioridade melhor e pior são usados como intensificadores dos advérbios bem e mal, quando se comparam os atributos de dois ou mais substantivos. Ou seja, deve dizer-se “a União de Leiria joga melhor do que o Real Madrid”.

Se à frente dos comparativos de superioridade bem e mal houver um particípio verbal, normalmente terminado em –ado ou -ido, não se devem usar as formas sintéticas melhor e pior e, sim, as formas analíticas mais bem, menos bem, mais mal e menos mal.

Por outras palavras: ele foi o candidato mais bem/mal colocado no último concurso. Estas e muitas outras regras e correcções podem ser encontradas no livro de Sandra Tavares e no Dicionário de Erros Frequentes da Língua, de Manuel Monteiro.

Por que razão damos tantos erros num idioma que aprendemos desde pequenos? “Não temos o hábito de consultar dicionários, gramáticas e prontuários. Ter dúvidas é saber e deve-se folhear os dicionários para as tirar”, refere a autora de 500 Erros Mais Comuns da Língua Portuguesa. Sim, os livros folheiam-se e não se “desfolham”. Isso seria arrancar as folhas.

Sandra Duarte adianta que o facto de se ler menos e com menos qualidade aliado ao cada vez maior número de atractivos digitais e o ritmo de vida alucinante não ajudam. Tal como não ajuda, sublinha a autora, ver, ler e ouvir, diariamente, erros ortográficos, de sintaxe e de pronúncia, nos meios de comunicação social, órgãos que o público se habituou a olhar como referências no domínio da língua.

Mas voltemos aos “erros e calinadas”. Saiba que alugar e arrendar não são a mesma coisa. O primeiro verbo é utilizado para coisas móveis e o segundo para imóveis. A diferença é simples de entender.

As casas, quartos, garagens e terrenos arrendam-se pois são “imóveis” pela sua natureza física e jurídica. Tudo o resto é considerado “móvel” e susceptível de ser alugado; do mais pequeno alfinete ao maior transatlântico.

Costuma dizer uma grama, duas gramas, três gramas? Mais uma vez, está errado. Em português de Portugal, a medida de peso grama é sempre masculina – logo: um grama, dois gramas, três gramas. Em português brasileiro, a versão feminina existe mas apenas para designar a “grama” ou seja, a relva.

Dizer-se “o Manuel foi roubado” ou “o Manuel foi furtado” também não é a mesma coisa, embora o facto subjacente – a sonegação de propriedade – seja o mesmo. “Roubo” implica violência contra a vítima.

Se alguém na rua é forçado a entregar o dinheiro que tem na carteira, sob a ameaça, trata-se de roubo. Se um estranho entra em casa de alguém e leva os objectos de valor, enquanto o dono dorme – sem ameaça física ou psicológica -, é furto.

A diferença é não apenas linguística mas também judicial, já que, à luz do Código Penal se tratam de crimes com penas diferentes.

E fica aqui mais um recado: quando escrever, não confie no que lê no Facebook e outras redes sociais, Wikipedia e internet em geral. As regras do português de Portugal, mesmo com o Acordo Ortográfico (AO), diferem das do português brasileiro.

Por exemplo, em Portugal, usa-se a construção ter de, para designar obrigação: “tenho de comer, porque, se não comer, passo fome.” Ter que, serve para designar quantidade. “Ter que fazer várias tarefas.”

Na maior parte das vezes, o que pretendemos exprimir é obrigação, logo, devemos dizer tenho de e não “tenho que”. No Brasil, “ter que” é de uso constante.

Claro que não ajuda a maior parte da internet estar cada vez mais em português brasileiro e o AO ter criado a falsa sensação, não só em portugueses e brasileiros, mas também nas grandes casas de software, de que o português ao ser acordizado ficaria com todas as suas diferenças eliminadas.

Pelo contrário, apareceram diferenças que antes não existiam, como as duplas grafias receção (leia-se recePção ou recéção, em Portugal) e recepção (no Brasil) e a hiper-correcção nos portugueses que, literalmente, a torto e a direito, começaram a retirar consoantes que se lêem.

Os casos mais flagrantes são impaCto ou contaCto (a grafia no Brasil é contato) ou ainda a retirada do hífen – aquele tracinho no meio das palavras que ninguém sabe o que chamar – de palavras que o mantêm, como sota-vento, que, de repente, para muitos órgãos de comunicação que aplica o AO, passou, erradamente, a sotavento, ou cor-de-rosa que manteve os seus hífens e cor de laranja que os perdeu… a regra?

Aparentemente, o grupo de estudiosos que criou o AO considera que uma expressão é “mais antiga que a outra” e, por isso, mantém “os tracinhos”. Como saber como escrever em casos semelhantes ou aferir a idade da expressão? Isso foi algo que o grupo de estudiosos não explicou.

Tenha cuidado e não evacue pessoas
Quando fala das suas férias, refere uma estada ou estadia? O termo correcto, refere Manuel Monteiro, no seu Dicionário de Erros Frequentes da Língua, é estada. Admirado?

Não é para menos, à força de tantas vezes ouvirmos “estadia” - tempo que um navio é obrigado por lei a estar num porto -, o termo correcto passou a soar-nos mal e o menos correcto firmou-se no nosso léxico.

O mesmo se passa com os galicismos esclavagismo e esclavagista… que há umas décadas nem sequer existiam nos dicionários mais respeitados da língua portuguesa. Afinal, qual é a palavra mais acertada?

“O termo mais correcto é escravista que origina da palavra escravo, que também influenciou outros termos como escravização, escravatura, escravizar...”, explica Manuel Monteiro que aponta outro exemplo flagrante que ouvimos várias vezes por dia nas televisões.

“Evacuaram-se 30 pessoas está errado. Evacuam-se espaços. As pessoas evacuam, claro está, no sentido de expelir excrementos. Não há um só verbo para substituir evacuar na acepção de transferir pessoas. Deslocar, transferir… Em situações extremas, as pessoas serão desalojadas.”

Por influências regionais, também se nota uma a ausência de acentuação nos verbos. Um dos casos mais flagrantes é a utilização das formas verbais, como participamos, ou mudamos, conjugadas no presente e utilizadas para descrever o passado.

No pretérito, o verbo tem de ser acentuado na penúltima sílaba, para se perceber que a acção já decorreu. “Hoje, participamos na prova” é completamente diferente de “hoje, participámos na prova”.

Por fim, não diga nem escreva “há uma semana/dia/hora atrás”. O verbo “há” já indica passado. Usar o “atrás” é um pleonasmo tão estapafúrdio como “subir para cima”, “entrar para dentro”, “metades iguais” ou ainda a “grande maioria”. Se é maioria já é a maior parte. Quanto muito poderá referir uma “larga maioria”. Boas conversas em bom português.

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