Opinião
O Povo que toca
As Filarmónicas possibilitaram, num panorama de pobreza artística e musical confrangedor, que milhares e milhares de jovens tivessem aprendido música
Era miúdo e gostava de ouvir as bandas filarmónicas. Nas procissões, nas romarias, em celebrações especiais. Não tanto pelo que tocavam, sou sincero, porque para o meu ouvido pouco sensível tudo me parecia igual, a não ser o ritmo, mas pela comunidade que representavam.
Alguns dos meus vizinhos aí tocaram anos e anos e lembro-me bem quando tinham que despegar mais cedo, nos dias em que tinham ensaio. Desde cedo também compreendi que nos ensaios se esqueciam, por inteiro, as agruras da vida. Talvez tocassem de ouvido, mas admirava-me como conseguiam seguir o Maestro.
E admirava-me como homens com mãos calejadas da enxada, jovens pedreiros de dedos martirizados por tanto balde de massa carreado, empregados de serrações, todos aí se encontravam, a “tocar músicas”, com uma compenetração e sensibilidade que me deixavam espantado.
Lembro o meu vizinho, o Sr. José Marques, hoje com mais de noventa anos, e que dedicou dezenas de anos à Filarmónica da Caranguejeira. Até poder. E lembro vários irmãos, os Neves por exemplo, que tiveram que abalar cedo para França… E como não falar do meu vizinho e amigo, o Isildo, como eu na casa dos 67, que desde os 12 se juntou à Filarmónica da Caranguejeira, durante 50 anos, sem nunca esmorecer. Numa ligação que hoje perdura através do seu filho, o Nuno, da sua nora e de dois dos seus netos.
Na realidade, até há cerca de 50/40 anos as Filarmónicas foram as únicas escolas de formação musical populares (por contraponto ao ensino musical elitista), onde todos, sem exceção, eram bem vindos.
As Filarmónicas possibilitaram, num panorama de pobreza artística e musical confrangedor, que milhares e milhares de jovens tivessem aprendido música ou, pelo menos, tivessem aprendido a tocar um instrumento. Quantos deles encontraram aí a sua vocação e se tornaram músicos e instrumentistas de renome?
E embora as Filarmónicas se tenham “reinventado”, integrando maestros e músicos com altíssima formação musical, criando escolas de formação musical inicial para os mais jovens, o verdadeiro impacto das Filarmónicas na nossa sociedade necessita ser mais estudado.
E é urgente o seu reconhecimento e do papel que tiveram e têm tido. Não só na formação musical de gerações de jovens, mas também na sua formação cívica, na sua importância para a identificação e coesão das comunidades, para a consciência social e, finalmente, o seu contributo para o movimento associativo e para a cultura em geral.
Um verdadeiro Património Imaterial da Humanidade, que a UNESCO deverá um dia reconhecer também.
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990