Opinião

Não, Nada de Beijos

28 jan 2016 00:00

Assim Começa o Mal, um livro de Javier Marías, edição Alfaguara

Começa assim, em jeito de Era uma vez, há muito, muito tempo... Como quem conta um conto de fadas, ou uma fábula, querendo, muitas vezes, rematar com uma moral. Mas não caminha para aí, porque logo nos elucida que foi há muito tempo, mas não tanto quanto dura uma vida e, uma vida, por vezes é tão curta e, na sua maior parte, não carrega morais, mas tão só o peso das suas vidas que, na morte, já só deixam as cinzas da memória que se espalham com o vento e se perdem na história.

O autor tem uma estória que se mistura com a história e que acha que deve, e merece, ser contada. Uma estória de gentes, que se ama e odeia, e que se mistura com a história de um país. A estória de gente normal que se cruza com os vermes que têm a capacidade de sobreviver em todas as situações levando os outros a fazerem o que não querem, mas não podendo dizer que não.

A estória de mães e filhas e dos homens que as amaram. Assim Começa o Mal regressa, pela voz do narrador, Juan, participante activo na estória, ao início da década de '80, a uma Madrid acabada de se libertar da canga franquista e que descobre a liberdade travestida em todos os excessos: o perdão aos criminosos falangistas, a vida nocturna numa cidade que não dorme, a liberdade sexual numa época sem Sida e a chegada do divórcio libertador.

Juan de Vere é um jovem acabado de sair da universidade que vai trabalhar como secretário pessoal de um realizador espanhol que cavalga o cinema desabrido dos anos ’70 e ’80, companheiro de estrada do mítico Jess Franco.

Eduardo Muriel, assim se chama a chave do passado, permite a Juan a viagem pela fascinante Madrid da movida dos anos ’80, mas também das feridas por cicatrizar. De todas as estórias que nos conta, tenta falar, en passant, da estória de Beatriz Noguera que se revela, afinal, omnipresente, e o ponto central de toda a vida, presente e futuro, e as descobertas, as experiências, os dramas, as mentiras, o amor e o calvário.

Beatriz, mulher abandonada, mãe, amante, suicida, transformada em desejo do narrador na pulsão da sua juventude, o maior dos seus desejos, aquiesceu, e ele pôde, finalmente, gravar na pele aquele que seria o conhecimento de uma vida, impossível de apagar, e que o marcaria para sempre, e o condicionaria. Assim Começa o Mal e o pior fica para trás, achamos. Mas o passado faz-se presente e “Não, nada de beijos.” Um livro genial.