Opinião

Música | A angústia do audiófilo no momento da escuta

8 out 2025 17:10

Talvez seja exatamente isso que acontece com quem ouve música ao longo de uma vida inteira: não se cansa dela, mas transcende-a. Passa a ouvir o mundo como se fosse uma partitura ainda por decifrar

Tocou recentemente em Leiria o compositor e investigador Hugo Vasco Reis. Num dos encontros do Ciclo de Música Exploratória Portuguesa, com a chancela da Fade In, Reis partilhou com o público uma escuta que ultrapassa os limites da audição convencional: sons captados por dispositivos especiais, que sem estes aparelhos são inaudíveis ao ouvido humano. Das frequências emitidas pelas pás de ventoinhas eólicas ao tremor subterrâneo que precede a chegada de um comboio, passando pelo murmúrio interno de uma árvore, tudo vibra, tudo ressoa, mesmo quando julgamos que nada há para ouvir.

Mas enquanto Reis mergulha nesses mundos sonoros, a maioria de nós permanece presa à cacofonia do quotidiano: o rugido de determinadas motas cujos escapes foram afinados para ofender em contraponto ao ligeiro soprar dos automóveis e motociclos elétricos a deslizar na estrada; o ronco persistente dos motores a combustão; e, claro, os sons humanos — festas, risos, conversas, gritos. São estes os sons que nos acompanham e que moldam a nossa paisagem auditiva, por vezes sufocante, fora do lugar.

Contudo, há quem, ao longo de décadas, tenha ouvido tanta música — não só a popular, a comercial, a funcional, mas também a experimental, a silenciosa, a microscópica — que o seu ouvido se transforma. Essa pessoa começa a perceber que o mundo não termina onde a audição convencional acaba. Passa a escutar o que vibra entre as notas, o que pulsa sob o silêncio aparente, o que ressoa nas frequências que escapam ao alcance comum. A música, nesse ponto, deixa de ser apenas composição humana — torna-se escuta do mundo em si, na sua complexidade mais íntima e invisível.

É nesse território que Hugo Vasco Reis opera. Interessa-se não só pelos sons que estão a desaparecer — como o ritmo cadenciado de um tear antigo, já quase extinto nas oficinas portuguesas — mas também pela própria natureza da escuta. Trata-se de uma ecologia do som: uma reflexão sobre como o ruído excessivo da civilização moderna abafa não só os sons naturais, mas também a nossa capacidade de ouvir com profundidade. Em fim de mandato, neste ponto, as autarquias ignoram.

Nesse sentido, a harmonia — entendida não como beleza estética, mas como equilíbrio entre presença e ausência, entre ruído e quietude — torna-se urgente. Num ecossistema cada vez mais saturado de estímulos sonoros artificiais, aprender a ouvir o que quase não se ouve pode ser um ato de resistência, de reencantamento do mundo. E talvez seja exatamente isso que acontece com quem ouve música ao longo de uma vida inteira: não se cansa dela, mas transcende-a. Passa a ouvir o mundo como se fosse uma partitura ainda por decifrar — complexa, aérea, e profundamente humana.