Opinião

Letras | Sinais de Fogo - a obra genial de Jorge de Sena

7 jul 2022 12:44

Abrange todas, mas todas as realidades de um Portugal nos primórdios do Estado Novo amachucado pela miséria, pela ignorância, pela sujidade e pela aceitação muda do seu povo

* Texto publicado originalmente na edição em papel do Jornal de Leiria de 30 de Junho de 2022

… ou melhor: uma das geniais obras de Jorge de Sena porque genial foi ele por quanto tudo o que escreveu, que estudou e investigou e ensinou, que pensou, que conferenciou, que criou.

Como escreve Eugénio Lisboa, “Jorge de Sena é um dos casos mais singulares de toda a nossa literatura. Homem poliédrico e contraditório (…) inteligente e caloroso, insolentemente auto-afirmativo (…) pensador que sente e sentidor que pensa, poeta, dramaturgo, contista, novelista, romancista, ensaísta, crítico, erudito investigador, epistológrafo minucioso, (…) solta-se da sua obra uma força, uma enormidade, um gigantismo, uma ousadia na “transgressão” que quase beiram a fealdade (…)

É tudo isto e muito mais que se solta da leitura de Sinais de Fogo, o único romance do genial escritor. Obra incompleta – segundo diz Mécia de Sena na introdução – que faria parte de uma obra romanesca maior, Monte Cativo, que não chegou a ser escrita, Sinais de Fogo abrange todas, mas todas as realidades de um Portugal nos primórdios do Estado Novo amachucado pela miséria, pela ignorância, pela sujidade e pela aceitação muda do seu povo.

Apesar do ambiente social circundante, a obra nada tem a ver com a escrita neorrealista. A intriga principal, que tem lugar no verão de 36 na Figueira da Foz, (bem como a secundária que a precede e fala da bela vida de jovens lisboetas pré-universitários) roda em torno de famílias da burguesia média-alta que não têm a mínima falta de conforto e regalias.

Engenheiro de formação base, Jorge de Sena concretiza o romance como quem executa um projeto: narrativa em cinco partes, a primeira das quais é a iniciação ao enredo principal. Este, já passado na Figueira, desenvolve-se nas três partes seguintes rigorosamente delineadas: planeamento – em movimento ascendente – no qual são apresentadas as personagens que vão dar corpo à história; a execução do plano – os amores de Jorge e de Mercedes; e o desenlace dos acontecimentos, em movimento descente da ação. A parte quinta e última, de regresso a Lisboa, corresponde ao encerramento do projeto e respetivas consequências.

Toda a teia de acontecimentos é posta perante o leitor pela voz e pelo pensamento de Jorge, o narrador personagem principal, possível alter ego do autor, o que não significa tratar-se de uma obra autobiográfica.

A rondar o estilo polémico e controverso do britânico D. H. Lawrence, Sena expõe, de forma profundamente poética a parte mais crua da natureza humana. Nada do que respeita à teia da vida daquele ano de 36 é esquecido nesta obra prodigiosa, mas dominantes e ousados são o tratamento da política – o eclodir da fratricida Guerra Civil de Espanha e a fria implantação do Estado Novo – da abjeta miséria social aceite – o abuso sobre as mulheres, sobre as criadas, sobre os desvalidos – e da assunção da sexualidade incidindo bastante sobre a homossexualidade e a prostituição.

Este é o ingrato mas corajoso papel do Jorge narrador, que do de protagonista que nasce para a Vida, para o Amor e para a Poesia, falarei da próxima vez.