Opinião
Letras | Noel Ferreira (2014) Passo a Passo OU o tempo reencontrado…
Se há algo a que nunca os Poetas se vergaram foi à inexorabilidade do destino
Aproveitei o calor deste Verão para reler Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, e cheguei, ofegante, ao vol. VII, O Tempo Reencontrado. O meu colega e amigo Orlando Manuel Ferreira Caetano (1938- 2025) morreu em setembro e fez-me respirar a filosofia proustiana com acutilância: as circunstâncias sociais juntam-nos; a obra de arte irmana-nos; a memória individualizanos; a morte reencontra-nos a todos. Praticamente passados 40 anos sobre o início das minhas funções docentes na ESECS do Politécnico de Leiria, a figura do Orlando, da área de Psicologia, foi sempre para mim uma trave-mestra: solidário; bondoso; criativo; confiante; estimulante. Por acaso – ou não – lemos um no outro o amor pelas palavras e fui eu, então jovem inexperiente, a fazer a apresentação do primeiro livro de poesia Descontinuidades (1991), do pseudónimo Noel Ferreira, na biblioteca da (na altura…) ESEL.
Essas minhas palavras empoeiradas ter-se-iam perdido se Orlando não insistisse em as dactilografar (ainda sem PC…): “[…] O amor é talvez o tema que marca toda a obra, pela sua presença em quase todas as composições. E assume afinal várias faces. Um amor erótico que se revela desmistificado e se põe ao lado de um amor puro, como é expresso no poema “Pétalas Rubras”. Ainda o amor-paixão, o amor que faz o poeta-escultor perder-se pela sua própria criação, como afirma um poema: Quisera ser escultor / pra te arrancar da pedra / e dar forma ao teu corpo… / Quisera ser escultor. / Recriarte pra te não roubar, / recriar-te pra te não perder. Aqui está de novo a temática centralizante – o amor descontinuidade ou “Dilema”, como lhe chama um outro poema. […] Porque é pela leitura que a descontinuidade entre a literatura e a vida se resolve. A leitura transforma a ficção no nosso real; e as nossas experiências anteriores são filtradas, comparadas, assimiladas e enriquecidas com estas ficções de Noel Ferreira. Por isso – pela humanidade fundamental de que é portadora – a sua obra merece ser lida.” E quase tudo ficou registado…
O segundo livro de Noel Ferreira, além do azul, sairia em 1994, dedicado ao seu pai. Em 1999, sairia uma recolha das composições musicais de sua autoria – Vibrações da Alma – que, enquanto pastor da Igreja Evangélica Baptista, acompanharam a sua missão de fé religiosa. Em 2004, com 48 novos poemas, publica Nova Madrugada; e em 2011, com (E) terno Abraço, faz uma antologia dos seus versos escolhidos e amados, a que junta alguns inéditos. Com este novo/velho livro, visita a ESECS e os estudantes chineses, a quem – em novembro de 2012 – oferece exemplares (tal como nas cerimónias fúnebres deixou poemas seus para quem os quisesse ler). O ciclo parecia concluído quando, em 2014, novos 42 poemas surpreendem em Passo a Passo, em que o peso do tempo e o túnel da morte/do outro lado é registado no rosto da imagem da capa. Aí o meu abraço ficou no anfiteatro da ESECS e no Introito: “[…] se há algo a que nunca os Poetas se vergaram foi à inexorabilidade do destino. Caminhando, voltando ao paraíso da infância, protegido pelas asas de anjos femininos (figura maternal | amante | companheira | o Yin e o Yang em sílabas soletradas), encantado com as paisagens e as memórias guardadas (figura paterna), refletindo sobre as antinomias paradoxais de quase todo o agressivo e comezinho real, o Poeta encontra a paz e a harmonia possível no soletrar mágico das poéticas palavras, cinzeladas e lapidadas nas provas gráficas até á exaustão.”
De poeta menor para poeta menor, deixo-lhe um soneto “O Voo” de um pastor, aqui partilhado: “Pastor de improváveis rebanhos / Abençoado seja o voo possível / Imaculada viagem na montanha / Orla de caminho invisível // Riso aberto solícito amigo / Lenitivo de dores quotidianas / Abraço dos dias longos terríveis / Narrativa do bem engendrado // Doce seja o teu descanso / Outro espaço se alargou / Núcleo de um saber manso / Oração por todos entoou / E a metáfora do Senhor / Levou seu espírito e voou”. Silenciosamente, sei que compõe música para as palavras poéticas: o lugar onde o(s) tempo(s) se reencontra(m).