Opinião

Letras | Adolescência de Leonor Xavier

9 abr 2022 20:00

Muito marcante a sua ligação a Deus – Leonor Xavier foi sempre uma ativa mulher de fé – e o constante maravilhamento perante a Natureza

Tinha já morrido (em dezembro de 2021) quando este seu último livro veio a público, em fevereiro último.

Nada conhecia desta jornalista, escritora, cronista, biógrafa, «especialista de vida», no dizer do seu amigo José Tolentino Mendonça. Até que me deparei com este título Adolescência, fase da vida que considero de todas as outras a mais encantatória já que, no afã de querermos livrarnos da tão protetora infância e sôfregos por, gratuita e livremente, sermos tomados por «gente», há que lidar – aos altos e baixos – com o corpo, com a mente, com os pais, com as normas, com os outros, com o amor.

É todo esse turbilhão de novidades que não volta a acontecer nunca mais nas nossas vidas. E é sobre toda esta espiral de alterações – por vezes, dolorosas – que fala esta obra póstuma. Inicia-se a leitura com um muito objetivo prefácio em que a autora nos integra no tempo da sua adolescência, no modo como foi educada, como eram educadas as meninas da sua classe – burguesia média alta – em tempo de obscura ditadura – e nos conta que encontrou o seu diário de 1956 a 1960 que releu e lhe deu a ideia de, a partir dessas memórias, dar a conhecer «o retrato de uma época, de um desfile de preceitos e costumes» hoje desaparecidos

Aqueles quatro anos cobrem o seu percurso escolar entre o 3º e o 7º anos (atuais 7º e 11º) no Liceu Maria Amália que Leonor assim relembra: «posso dizer que aquele liceu era execrável, o regime era absoluto, o despotismo era insuportável, a repressão é hoje difícil de descrever.»

A narrativa desenrola-se no registo de fragmentos do diário do qual a autora diz: «Não altero nem corrijo o texto original. Mantenho palavras e repetições, não acrescento pontos nem vírgulas.»

Cada entrada transcrita do diário é seguida de um comentário, uma reflexão da autora no tempo presente que ajuda o leitor a entender as fragilidades da adolescência, daquela adolescente que viveu num tempo e num espaço minados de restrições impossíveis de aceitar e de entender na atualidade.

«Estou na idade das asas e não na idade ingrata.» De admirar a correção frásica e ortográfica com que a jovem Leonor escrevia com apenas 12/13/14 anos. De espantar o seu conhecimento social – o enorme fosso entre ricos e pobres, a segregação dos ciganos, a fome, a miséria, a triste vida das mulheres, a injustiça do mundo – e até, de certo modo, político – a greve do sal, a PIDE, os comunistas, as manifestações a Humberto Delgado.

Muito marcante a sua ligação a Deus – Leonor Xavier foi sempre uma ativa mulher de fé – e o constante maravilhamento perante a Natureza.

De leitura acessível, este é, sem dúvida, um livro a ser lido por aqueles que, como eu, foram adolescentes naquela época porque lhes trará muitas recordações – boas ou más – e os ajudará a entender muito do que nas suas vidas aconteceu. Igualmente recomendável aos jovens de hoje para melhor aquilatarem do que se ganhou (ou não) com a renovação dos tempos.