Opinião

Invisibilidades

10 out 2022 14:43

Basta alguém ser “diferente” e fugir à definição social de norma para ficar exposto a comportamentos e comentários discriminatórios. O bullying surge como consequência e reflexo da existência de hierarquias sociais de poder, sendo também utilizado como mecanismo para a perpetuação dessas mesmas desigualdades e hierarquias. Por isso, enquanto a sociedade não muda, mudemo-nos a nós próprios e ajudemos os mais novos a ver o outro como igual a si.


Um dia destes, ao chegar a uma escola, parei por breves instantes a observar quatro adolescentes que jogavam basquetebol no recreio. Nenhum deles me viu. Para além de os olhar do lado de fora do muro, a urgência de encestar não lhes permitia distrações com espetadores. Teria sido giro ver quatro jovens despojados de Wi-Fi a interagir verdadeiramente, coisa rara nos dias que correm, mas aquela cena deixou-me triste. Um dos rapazes estava, apenas e claramente, a fazer número. Reclamava para si a posse de bola, uma vez estar sempre em posição estratégica, mas de todas as vezes que o fez foi ignorado. Ele estava lá, mas ninguém o via na verdade! O que estaria ele a sentir por trás do sorriso que procurava manter? O que o faria permanecer ali? O que levaria depois, em pensamento, para a sala de aula? O que falaria ele com os seus botões?

Não ser visto nem achado também é uma forma de agressão. É diminuírem-nos de tal forma que nos tornamos invisíveis. É ler nas entrelinhas que não há espaço para nós. É criar perceções negativas de nós próprios e do mundo. É exclusão social e acentuação das fragilidades e isso tem um impacto gigantesco nas nossas vidas, muitas vezes com repercussões que se generalizam e perpetuam em vários contextos.

Não gosto da palavra bullying, nem gosto deste tema, mas em meia dúzia de dias deparei-me com três situações que apesar de não representarem o verdadeiro bullying, repetido e intencional, mexeram com as minhas entranhas. Para além da história do basquetebol, duas crianças, em contexto de consulta, confessaram: “não gosto de meninos gordos” e “não brinco com os meninos novos porque já tenho amigos”.

Apoquenta-me pensar que seja assim, que não nos vejamos todos. Apoquenta-me saber que no sítio da brincadeira resida sofrimento e que o medo e a insegurança silenciem as gargalhadas inatas dos mais jovens. A aprendizagem só toma lugar se nos sentirmos em paz com o que nos rodeia. Já bastam os fantasmas que trazemos cá dentro e as distrações inerentes à sala de aula, quanto mais sentir que não se pertence ao grupo e experimentar sentimentos de rejeição constantes. Na realidade, a aprendizagem até é o menos. A saúde psicológica/emocional é que fica em maus lençóis e sem ela o caminho é demasiado sombrio.

Acho que já vos disse que detesto quem detesta e que abomino quem despreza. Bem, na verdade não é tão assim. Sou mais do tipo de tentar perceber o detestável e o desprezível, mas toda a situação que promova a não aceitação de uma criança enfurece-me e obriga-me a chamar o autocontrolo à razão, não é fácil dar uma resposta ponderada a comportamentos agressivos, incendeiam-nos com emoções fortes.

Todos precisamos de ajuda numa situação de discriminação, de violência ou de exclusão. E quando digo todos, somos mesmo todos. Estes fenómenos não resultam apenas de características individuais. Infelizmente, também são promovidos pela forma como a sociedade se organiza do ponto de vista político, económico e social, situação que cria condições para a desigualdade de poder e de acesso a recursos.

As crianças observam e aprendem. E todos nós já fomos crianças. Diferenças socioeconómicas, questões étnicas e ligadas ao aspeto físico, orientação sexual, resultados académicos, diversidade funcional, normas subjacentes às questões de género… tudo se envolve em preconceitos e se incute, mesmo que inconscientemente. Somos modelos das gerações futuras. Temos o dever de nos lembrar disso.

Basta alguém ser “diferente” e fugir à definição social de norma para ficar exposto a comportamentos e comentários discriminatórios. O bullying surge como consequência e reflexo da existência de hierarquias sociais de poder, sendo também utilizado como mecanismo para a perpetuação dessas mesmas desigualdades e hierarquias. Por isso, enquanto a sociedade não muda, mudemo-nos a nós próprios e ajudemos os mais novos a ver o outro como igual a si. As escolas podem implementar programas de prevenção e combate ao bullying, como o disponibilizado pela Associação Plano i, e receber formação através da associação No Bully Portugal, por exemplo. Em casa, a estratégia passa pela promoção do diálogo e comunicação assertiva, pela consciencialização dos nossos privilégios e, mais uma vez, pela tolerância, empatia e capacidade de reflexão.

O jovem que jogava basquetebol é autista. Trabalha semanalmente no sentido de conseguir desenvolver a sua reciprocidade social. Ele estava a tentar, mas ninguém se importou com isso.