Opinião

Honorável barbeiro

8 set 2022 21:45

Ali sentados em frente ao espelho deixamos de nos olhar refletidos, porque na superfície do espelho há todo um mundo de memórias por detrás de nós

Supondo que um sujeito pretende manter uma razoável imagem de cuidado de si e que aos outros é devida pelas mais elementares regras de urbanidade, digamos que vai cuidar das guedelhas pelo menos uma vez por mês.

Isto, claro está, quando a idade ainda não lhes cobrou o tributo da calvície porque outros há que voluntariamente se lhe antecipam e escanhoam a cabeça por opção própria.

E isto quem diz cabelo diz barba, coisa que antanho era sinal de honra pelo que se rapava a barba quando a honra estava perdida.

Mas isso eram outros tempos, quando a honra era condição de respeito e a palavra de honra escritura indelével, que mesmo custando grande prejuízo ao próprio, se cumpria na íntegra que a integridade do sujeito assim exigia.

Como no inverno tenho frio no coruto da cabeça e no verão o sol me amolece, ainda mais, as ideias, prefiro manter os cabelos que por aqui andam curtos e apresentáveis, pelo que mensalmente lá peregrino ladeira acima para que o Rui tesoure a seu gosto.

Saio tão feio como entrei, mas que diacho, mais composto e apresentável, na esperança que a curteza dos cabelos me areja o pensar.

Assim, marco hora, mas na verdade vou sempre antes.

Não para marcar presença, tão-somente porque aprecio estar ali num espaço de odores adocicados, de conversas espontâneas, de sons cruzados entre a música que se ouve de fundo e o matraquear constante e discreto das tesouras, tudo isto envolto numa curiosa cenografia.

Vou tentar explicar.

Ao que sei, o Rui é alentejano e, talvez por isso, um anfitrião de gema.

Recebe quem entra com um sorriso franco e atenção cuidadosa ao bem-estar do cliente, assim como quem recebe um amigo em casa.

Também lá está uma gaiata, responsável pela cadeira ao lado onde se fazem consertos de barbas e cabelo e que ainda não tinha nascido quando os Supertramp (que se ouvem em fundo) faziam concertos ao vivo.

Faz-me graça que ambos, antes de saberem do pedido de cada um, queiram saber sempre o nome de quem ali se senta e só depois iniciem o seu míster.

Ali sentados em frente ao espelho deixamos de nos olhar refletidos, porque na superfície do espelho há todo um mundo de memórias por detrás de nós.

Há um relógio cuco que nos reporta a um tempo em que o Kairos ainda era tempo oportuno e analógico e o Cronos ainda não se impunha digital num display frio e luminoso.

Há uma mala de porão com o interior forrado de papel com cornucópias que nos reporta para um tempo em que ainda não perseguíamos um foco porque era sabido que a vida dá muitas voltas e é uma viagem a ser aproveitada em cada paisagem.

Há um planisfério no teto colorido a tons matte, mas que, quando sentados, se vê de modo invertido ao que é uso ver-se e nos faz pensar que o mundo funciona em modo avesso, onde o norte deixa de estar em cima e nos recorda que quem vive no hemisfério dito do sul é esquecido por quem por cima se julga viver em direitos e bem-estar adquiridos, esquecendo quem em baixo fica e assim perpetuando a ordem injusta da partilha das coisas.

Há uma balança de pratos a recordar-nos que os pratos da balança – mesmo aos que no norte habitam – nem sempre se alinham na horizontal no que a deveres e direitos diz respeito.

Há discos dos Queen, Frankie Line e as Cantigas de Maio do Zeca Afonso, gente que cantou alertas que ainda hoje nos deveriam fazer pensar.

E quando ali estou a cortar o cabelo a preceito e a pensar nas memórias que este espaço suscita, espero sempre que por um destes dias entre o Miguel Torga porta adentro para se entregar aos cuidados deste honorável barbeiro.

 

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990