Opinião

Desmontar Padrões

10 mar 2021 11:59

A Ignorância coxeava rua abaixo, dotada que era de uma perna mais curta do que outra.

A Ignorância coxeava rua abaixo, dotada que era de uma perna mais curta do que outra. Nisto, encontrou um rapazito muito sujo e remeloso que, encolhido de frio e varado de fome, pedia esmola à porta da igreja. Sempre pronta a distribuir consternações, a Ignorância apiedou-se de imediato, predispondo-se prontamente a ajudar.

– Vês ali aquela mulher? – Disse-lhe, apontando para uma airosa morena, que gingava rua acima. – Chamam-lhe Memória. Vai lá perguntar-lhe porque passas tu frio e fome, porque ela com certeza se recordará.

Embora desconfiando, o rapazito assim teria feito, pois que num instante se ergueu, não fora a Memória, que tudo escutava, ter ao som do seu nome parado junto a ambos.

– Diz-me lá, meu rapaz, que tens tu? – Perguntou ela ao pequeno.

– Tenho frio e tenho fome e dizem-me que a senhora sabe porquê.

– Pois tu não te recordas?


E como o pequeno respondia que não, a Memória acercou-se. Limpando o rosto imundo da criança com a bainha das saias, a bela morena avivava-lhe simultaneamente os contornos e o ânimo, dir-se-ia que para melhor o predispor ao esclarecimento que se avizinhava.

– Tu és ainda pequenino, é natural que te não recordes. Mas para isso, estou cá eu. No dia em que nasceste, fadaram-te para a pobreza e para a miséria, condenando-te a uma vida de carências e privações. O teu agasalho, vieram uns ladrões e to levaram. Como nesse momento choraste desalmadamente, vieram outros piores ainda, que te comeram o pão. Por isso tens frio e tens fome. Porque te roubaram.

– E não seria melhor desaparecer com esses gatunos? – Perguntou a Ignorância.

– Pobre de ti que nada sabes – respondeu a Memória –, pois, se desaparecem, como poderá este pobre pequeno lembrar-se de guardar o agasalho e o pão, da próxima vez que os tiver? Só recordando quem nos rouba se podem frustrar novos furtos.

Indignada, a Ignorância pegou no rapaz pela mão e lá seguiram ambos rua abaixo, o pequeno indigente bramindo de frio e de fome, a outra coxeando consternadamente.

Gingando airosamente rua acima, seguiu também a Memória. Que triste é não recordar quem nos rouba, pensou. Mas para isso, estou cá eu.