Opinião

Cinema | Uma pint de Guinness com vista para o mar

19 fev 2023 14:50

Quem supusesse que, neste momento, a fasquia estaria demasiado alta para McDonagh só pode ficar boquiaberto com o resultado deste Os Espíritos de Inisherin

É escusado procurar a localização da ilha de Inisherin no mapa. O nome, cuja sonoridade deixa adivinhar a origem irlandesa, fará lembrar porventura Inishmore, Inishmaan ou Inisheer, as três ilhas de Aaran, essas sim, locais reais na costa oeste da Irlanda, e que terão inspirado Martin McDonagh a criar uma localização fictícia para contar a história da quezília entre Pádraic e Colm. Martin

McDonagh é, acima de tudo, um contador de histórias. Ainda que o currículo como dramaturgo leve algum avanço sobre a carreira de cineasta, a mestria e arrojo da sua escrita competem em pé de igualdade em ambos os campos artísticos. O seu mais recente filme, que após arrebanhar um número considerável de prémios leva embalo para ganhar várias estatuetas douradas em Hollywood, intitula-se Os Espíritos de Inisherin (The Banshees of Inisherin, 2022) e reúne no ecrã dois pesos pesados da representação com sotaque irlandês: Brendan Gleeson e Colin Farell. A mesma dupla havia já contracenado brilhantemente no filme de estreia de McDonagh, Em Bruges (In Bruges, 2008), uma divertida comédia negra algo subvalorizada pela indústria e que deixava já antever a capacidade de encadear enredos e construir várias camadas de storytelling que caracterizam o trabalho do autor. Sete Psicopatas (Seven Psycopaths, 2013) poderá até – ainda que inacreditavelmente – ter passado despercebido do grande público, mas o incontornável Três Cartazes à Beira da Estrada (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, 2017) concretizou a merecida consagração do realizador e o reconhecimento pelo trabalho de Frances McDormand e Sam Rockwell, nos principais papéis.

Quem supusesse que, neste momento, a fasquia estaria demasiado alta para McDonagh só pode ficar boquiaberto com o resultado deste Os Espíritos de Inisherin. A ação decorre em 1923, como se intui pelos sons das explosões e disparos que, diariamente, relembram aos habitante da pacata e remota ilha de Inisherin a existência de uma guerra civil na Ilha Grande. Pádraic, um homem simples que partilha a casa com a sua irmã Siobhán, leva uma vida tranquila, vendendo o leite das vacas que pastoreia serenamente, sempre acompanhado de Jenny, um pequeno burro de estimação. A sua rotina inclui, às duas da tarde, beber uma pint no pub e conversar com o seu bom amigo Colm, mais velho, dado a ponderações existenciais e exímio tocador de violino. Até ao dia em que Colm decide “romper” com a amizade entre os dois e terminar a “conversa sem sentido” com um “homem limitado”. Este é o ponto de partida para uma história bela, violenta e inesquecível. Um exercício de calculada deriva artística, por vezes surreal, em que a dimensão humana, social, política, espiritual e etnográfica se passeiam cruamente por enquadramentos magistrais e paisagens de beleza indescritível.

Absolutamente memorável!