Opinião

Cinema | Kokomo City

23 dez 2023 13:26

Um dos documentários mais bem conseguidos e marcantes de 2023

“The price in this country to survive at all still is to become a white man” - James Baldwin

James Arnold, bluesman norte-americano, tornou-se conhecido como Kokomo Arnold nos anos 30 do século passado após ter lançado uma música intitulada “Old Original Kokomo Blues”. Nesse mesmo ano de 1934 grava ainda “Sissy Man Blues”, onde canta: “Lord, if you can’t send me no woman, please send me some sissy man”.

Inspirada nestes versos, onde se intui a bissexualidade (ou mesmo uma questão de género latente) dum homem negro americano nos anos 1930, D. Smith encontrou o título que procurava para o seu primeiro filme: Kokomo City (2023). D. Smith, ela própria uma mulher trans, assume a escrita, cinematografia, produção, realização e edição de um dos documentários mais bem conseguidos e marcantes de 2023 – isto afirmo-o eu, com convicção, e em caso de dúvida deixemos os prémios falar por si.

Kokomo City é um filme arrojado e perspicaz que, através de entrevistas com quatro prostitutas negras transgénero, de Atlanta e Nova Iorque, traça uma paisagem crua e íntima da realidade e quotidiano destas mulheres. Filmado num luminoso preto e branco, cortado pontualmente por títulos e legendas coloridos, os relatos das quatro protagonistas Daniella Carter, Koko da Doll, Liyah Mitchell e Dominique Silver, bem como de uma mão cheia de outros entrevistados, são enquadrados por uma banda sonora vibrante e criteriosamente cuidada.

A banda sonora e a montagem de Kokomo City, cheia de interlúdios algo oníricos e de reencenações de alguns episódios descritos pelas protagonistas, denunciam uma certa aproximação à forma de videoclip musical, a que certamente o passado de D. Smith não é alheio. A história da autora é também uma parte importante do filme, no sentido em que a intimidade e identificação com aquelas quatro mulheres parte do seu próprio percurso. D.Smith foi um aclamado produtor musical, tendo sido nomeado para um Grammy pelo seu trabalho com Lil Wayne em 2009, e colaborado com Katy Perry, Andre 3000, Kendrick Lamar, entre outros. Este percurso de sucesso foi subitamente interrompido quando D. se assumiu como transgénero e, segundo a mesma, por esse motivo deixou de ter trabalho na indústria musical. Os anos que se seguiram deixaram-na à beira da falência, dependente do apoio de amigos. Nesse momento, confrontada com a possibilidade de ter de recorrer à prostituição para sobreviver, encontrou estas mulheres e começou a filmar Kokomo City.

A luta destas mulheres, enquanto prostitutas e transgénero, mas principalmente enquanto negras, e o ostracismo e preconceito da comunidade afro-americana são o grande foco de Kokomo City. Daniella será talvez a mais vocal neste tema, assumindo o ativismo e consciência social, que resume um pouco ao que o filme vem: “I’m dealing with the broken black women because the liberated black women don’t have time for the broken black women. Your man will see us both as equals, but you can’t”.