Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: O Assassino

11 nov 2023 12:09

Neste ponto do filme, em que Fincher nos dá o retrato de um ser frio, implacável, incapaz de sentir emoções, o espetador está completamente rendido à imoralidade (ou amoralidade) da personagem, o que não deixa de ser inquietante

O Assassino é um filme realizado por David Fincher que está agora nas salas de cinema, mas que brevemente habitará a plataforma Netflix. David Fincher, que começou a sua carreira com a realização de videoclips para artistas tão famosos como Madonna, George Michael ou Billy Idol, saltou para o cinema em 1992 com a realização do polémico Alien 3: A Desforra (uma desilusão para muitos fans da saga Alien), avançando depois para um conjunto de thrillers que marcaram a história do cinema, como foi o caso de Seven (1995), Fight Club (1999), The Girl with the Dragon Tattoo (2011) ou Gone Girl (2014).

O argumento deste novo filme, baseado numa novela gráfica de Alexis Nolent e Luc Jacamon, é assinado por Andrew Kevin Walker, o mesmo argumentista de Seven. Tal como em Seven, a rotina, a meticulosidade, a solidão e a falta de empatia marcam a identidade do assassino. No entanto, ao contrário do que acontecia em Seven, o assassino que nos é dado em The Killer é o narrador de si mesmo, revelando-se em monólogos interiores ao espetador, que não consegue, por isso, deixar de criar em relação a ele algum tipo de identificação e simpatia. Para que isso aconteça não é indiferente a escolha do ator que desempenha o papel de assassino. Michael Fassbender, ele próprio também ligado à saga Alien no duplo papel dos androides David e Walter em Prometheus (2012) e Alien: Convenant (2017), encarna neste filme a mesma frieza que encontramos no androide Walter de Alien: um corpo máquina despido de emoções, programado com um código de ação que lhe permite executar o plano, qualquer que seja. Um corpo contido, que se move com precisão e elegância, e que se dilui na multidão, anónimo, calado, sem identidade. Todos os encontros do assassino são breves e os diálogos curtos (o mais longo é com Tilda Swinton, que funciona como seu espelho), tornando o espetador o seu único confidente e cúmplice. Essa relação é logo estabelecida nos 20 minutos iniciais, provavelmente os melhores de todo filme. Ecoando A Janela Indiscreta de Hitchcock, o assassino partilha os seus pensamentos e reflexões filosóficas ao som de The Smiths enquanto observa de uma janela e se prepara para abater um alvo. O cinismo é o tom dominante, expresso em afirmações como: “não confiar em ninguém é o que é preciso para ter sucesso” ou “para os que acreditam na bondade da natureza humana pergunto-me: baseado em quê?”. Essa descrença geral serve de justificação ao individualismo. O assassino assume não servir nenhum país, nenhum deus, nenhuma causa e não ter empatia. Empatia é fraqueza e fraqueza é vulnerabilidade, afirma. E neste ponto do filme, em que Fincher nos dá o retrato de um ser frio, implacável, incapaz de sentir emoções, o espetador está completamente rendido à imoralidade (ou amoralidade) da personagem, o que não deixa de ser inquietante.

É por isso com alguma surpresa que se descobre que o assassino é, ele próprio, falível e vulnerável, o que marca o desenrolar da ação após esses 20 minutos iniciais. Apesar da notável interpretação de Fassbender, da competência da realização num estilo neo-noir e da surpreendente banda sonora (que inclui Portishead além de The Smiths), o filme não se livra dessa incoerência até ao momento final. Mas talvez seja intencional e David Fincher pretenda com isso fazer-nos refletir sobre a ambiguidade que qualquer um de nós sente quando se interroga sobre o que ou quem verdadeiramente é.