Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Mal Viver/Viver Mal

8 out 2023 09:15

O tema dominante continua a ser a má maternidade, como se as mães dos dois filmes fossem versões contemporâneas das madrastas de um conto infantil, incapazes de amar para além de si mesmas

Mal Viver e Viver Mal constituem o díptico de João Canijo que conta com a participação das atrizes habituais do realizador, Anabela Moreira, Rita Blanco e Cleia Almeida, a que se juntam Beatriz Batarda, Madalena Almeida, Vera Barreto, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Lia Carvalho, Leonor Vasconcelos, Carolina Amaral, Nuno Lopes e Rafael Morais. Vencedores de vários prémios internacionais, os dois filmes estrearam no início do ano e estão disponíveis na plataforma Filmin. Têm o mesmo elenco, o mesmo cenário (um hotel junto à costa no norte de Portugal) e decorrem no mesmo fim de semana. Podem ser vistos separadamente ou em conjunto, e a ordem é irrelevante. O tema é o mesmo de todos os outros filmes de Canijo: o sofrimento do amor no feminino, desta vez centrado naquele que é infligido pela figura maternal.

Mal Viver tem como protagonistas Anabela Moreira (Piedade), Rita Blanco (Sara) e Cleia Almeida (Raquel), que, juntamente com Madalena Almeida (Salomé) e Vera Barreto (Ângela) constituem o grupo de cinco mulheres, unidas por laços de sangue, que habitam o hotel. São mulheres que perderam homens (pais, maridos ou amantes) por morte ou abandono e que se encontram presas num ambiente claustrofóbico e decadente, que intensifica as tensões e sublinha a sua solidão.

O filme é construído em camadas, com planos longos e profundos em que imagens e vozes se sobrepõem. Por detrás do drama central que envolve as cinco mulheres, Canijo vai revelando ao espetador retalhos de vida que acontecem no interior de janelas iluminadas ou por detrás de portas entreabertas, conversas que atravessam paredes e se misturam com gritos ou gemidos, o ladrar de cães e a voz de Vasco Palmeirim, numa cacofonia marcada pelo som recorrente de uma sirene que sublinha a urgência da vida e prenuncia o fim.

Mal Viver é um filme sobre os vazios criados pela falta de amor e pela indiferença e crueldade que o substituem. Como diz Piedade (Anabela Moreira), protagonista principal de Mal Viver, a vida é complexa e o amor é uma agonia. O egoísmo é posto a nu, como os corpos, na sua forma mais crua, obrigando a uma procura constante pela Alma (nome da cadela de Piedade que é, segundo a personagem, a coisa mais importante da sua vida). É sobre a falta de amor que destroça a vida e faz querer deixar de viver. O filme encerra com a voz de Amália Rodrigues a cantar o fado “Estranha Forma de Vida”, escrito pela própria Amália, e os versos “Coração independente/ Coração que não comando/ Vives perdido entre a gente/ Teimosamente sangrando” ganham um novo sentido.

Mas se Mal Viver se centra nas personagens que habitam o hotel, Viver Mal, inspirado nas peças de Strindberg, é sobre as histórias dos seus hóspedes, como se fosse o lado B de um disco ou o verso de uma mesma moeda. Viver Mal é a revelação do que fica oculto em Mal Viver (ou vice-versa). As imagens e vozes vindas de fora de cena ganham vida e as personagens secundárias, muitas vezes escondidas nas sombras e na distância, tornam-se protagonistas. Fotogramas e conversas repetem-se, mas mudam de plano e entram em cena. Os primeiros planos passam a segundos, e os segundos diluem-se na cacofonia já familiar do filme anterior. O tema dominante continua a ser a má maternidade, como se as mães dos dois filmes fossem versões contemporâneas das madrastas de um conto infantil, incapazes de amar para além de si mesmas. As sombras e os reflexos que habitam o hotel de Mal Viver são os mesmos de Viver Mal, e a fotografia, da responsabilidade de Leonor Teles, sublinha-os em jogos de luz e escuridão, com a beleza de uma pintura barroca. O amor romântico, protagonizado pelos dois hóspedes masculinos e por algumas mulheres, é também dominado pelas figuras matriarcais e igualmente estéril.

Mal Viver e Viver Mal poderiam chamar-se Mal Amar e Amar Mal. Constituem um tratado sobre o egoísmo humano em duas partes, escrito (como é reconhecido nos créditos finais) em diálogo com os atores que encarnam as personagens que vivem a falta e os excessos daquilo a que muitas vezes chamamos amor.