Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Anatomia de uma Queda

23 fev 2024 09:00

Aquilo que torna o filme merecedor de Óscares é a surpreendente subtileza com que as emoções dos vários protagonistas são postas em jogo

Anatomia de uma Queda é o filme vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes e é um dos fortes candidatos aos Óscares, contando com cinco nomeações: melhor filme, melhor atriz, melhor realizador, melhor argumento original e melhor montagem.

O filme é realizado por Justine Triet, que é igualmente responsável pelo argumento, escrito em colaboração com o seu companheiro e também realizador Arthur Harari. Talvez por ter sido escrito pelas quatro mãos de um casal, o filme retrata de uma forma dura, mas equilibrada e contida, a degeneração do amor. Para isso contribuem as excelentes atuações de Sandra Hüller, no papel de Sandra, a esposa e mãe, e Milo Machado Graner que interpreta o papel do filho cego de 11 anos. O marido e pai, Samuel, é encontrado morto logo nos minutos iniciais do filme, no chão coberto de neve do challet isolado numa montanha dos Alpes franceses que ele próprio estava a restaurar.

A partir daí, o filme transforma-se num misto de policial e filme jurídico. Descartada a possibilidade de acidente, Sandra é acusada de homicídio e o seu advogado, interpretado por Swann Arlaud, irá defendê-la em tribunal, local onde se desenrola a maior parte da ação física do filme, mas que obriga a flashbacks e reconstituições que vão definindo o tom da relação entre o casal.

Apesar de se construir como policial, aquilo que torna o filme merecedor de Óscares é a surpreendente subtileza com que as emoções dos vários protagonistas são postas em jogo: da raiva à culpa, do egoísmo ao cuidado, da cumplicidade ao ciúme, do amor ao ódio. É a mistura bem doseada destes ingredientes que vai alimentando no espetador a dúvida sobre se a queda de Samuel terá sido um crime ou um suicídio, sobre se Sandra será culpada ou vítima, sobre se Daniel, o filho cego, mente ou diz a verdade.

Num tom intimista, próximo de Quem Tem Medo de Virgínia Wolf, de Mike Nichols, ou do mais recente Malcolm & Marie, de Sam Levinson, o casal de Anatomia de uma Queda digladia-se numa luta de resistência pela identidade pessoal no espaço fluido de uma relação amorosa e familiar, gerando no espetador o reconhecimento e empatia que lhe garante sucesso. Mas além do tema do filme, Anatomia de uma Queda vive de pequenos detalhes, como a banda sonora a marcar a identidade das três personagens, o cenário a lembrar Shining, de Stanley Kubrik, os contrastes cromáticos que acentuam a ambiguidade geral, o cão Snoop, interpretado por Messi, e, acima de tudo, a reflexão que perpassa todo o filme acerca da relação entre o que é facto e o que é ficção, o que é realidade e o que é interpretação. E é essa questão que, de modo quase subliminar, fica a ecoar no espetador muito depois de ele ter saído da sala de cinema.