Opinião

Bolos de coco

15 set 2023 10:26

Descobrimos, talvez tarde, que tinha uma predilecção especial por bolos de coco

Talvez ela tenha uma certa facilidade em memorizar datas ou se foque apenas no que realmente lhe importa - a lealdade, a saúde dos filhos, a verdade expressa em todos os actos.

A periferia da cidade onde nasceu marcou-lhe o vocabulário e os poucos anos de escola permitiram-lhe ajudar a manter a economia familiar em ordem, as listas da mercearia organizadas e a sementeira da pequena horta regulada pelo Almanaque Borda d’Água. A infância terminou-lhe cedo tal como a dos cinco irmãos.

A quarta classe abriu-lhes as portas do comércio, da camionagem, da restauração e da cozinha. O pai enviuvou prematuramente. E até ao dia em que morreu nunca nenhum filho o deixou sentir-se só. A ela coube-lhe cedo a sorte de um casamento feliz. O amor filial que conheceu na casa da periferia da cidade onde nasceu prosseguiu para o lar que criou ao lado do marido.

A primeira parte da vida aconteceu-lhes sem sobressaltos. Montaram casa, tiveram filhos, a família viu o mar em viagens a preços com desconto nos autocarros da Rodoviária Nacional onde ele era motorista. A meio da vida a diabetes levou-lhe o marido com quem foi feliz. As economias que fizeram juntos chegaram para pagar as restantes prestações da casa.

Mas as crianças, que tinham de estudar na escola da cidade, já não tiveram direito aos bilhetes mais baratos da Rodoviária Nacional. Não voltou a casar. Entregou-se às limpezas. De escadas primeiro, de casas particulares depois.

Chegou-nos à porta com horas por ocupar. Acompanhou-nos desde então as transformações do corpo, as saídas furtivas sem o conhecimento adulto, os primeiros dramas amorosos da adolescência. Cuidou-nos. Consolou-nos nas doenças e nas perdas e manteve as listas do supermercado organizadas e fiéis a todos os nossos desejos.

Descobrimos, talvez tarde, que tinha uma predilecção especial por bolos de coco. Assistiu ainda às nossas mudanças de cidade e desejou-nos saúde e sorte a cada despedida. Envelhecemos todos. Ela permanece com uma certa facilidade em memorizar datas – as dos nossos aniversários e os de uma nova geração que já nasceu, as datas das mortes de quem lhe ocupou as horas livres quando teve de se dedicar às limpezas.

Já tem netos e um filho emigrado em França que não a deixa conhecer a solidão. Calhou-me a sorte de a ter tido a acompanhar os meus dias e de testemunhar como conduz, ainda hoje, a sua vida em torno do que realmente lhe importa - a lealdade, a saúde dos lhos, a verdade expressa em todos os actos.