Opinião
Amnésia cívica do Ocidente
O Programa Alimentar Mundial declarou que Gaza enfrenta a pior crise de fome induzida por conflito da era moderna
O cenário das relações internacionais mergulhou num caos cujas origens recentes remontam, em grande parte, à administração Trump. Com discurso agressivo, isolacionista quando convinha e intervencionista sempre que favorecia interesses estratégicos, Trump destruiu o pouco de multilateralismo que restava.
Pior que o trumpismo foi o servilismo europeu que se lhe seguiu — uma Europa ajoelhada, acorrentada às diretrizes da política externa americana e ao medo da irrelevância. A consequência mais brutal desta subserviência manifesta-se hoje em Gaza.
Desde outubro de 2023, mais de 140 mil palestinianos foram mortos, feridos ou estão desaparecidos — cerca de 70% mulheres e crianças, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza e confirmados por agências da ONU. Mais de 1,8 milhão de pessoas, 80% da população da Faixa, foram deslocadas. Quase todos os hospitais foram destruídos ou deixaram de funcionar. Fome e sede tornaram-se armas de guerra: mais de 2.000 crianças morreram por desnutrição e desidratação, segundo a OMS.
O Programa Alimentar Mundial declarou que Gaza enfrenta a pior crise de fome induzida por conflito da era moderna. E o Ocidente permanece em silêncio. Muitos líderes europeus justificam o injustificável, invocando a “autodefesa” de Israel e ignorando o princípio da proporcionalidade e os apelos do Tribunal Penal Internacional.
A Comissão Europeia, sob Ursula von der Leyen, foi das primeiras a legitimar a ofensiva israelita, oferecendo apoio político e financeiro a um governo acusado de crimes de guerra. O Reino Unido e a Alemanha continuam a vender armas a Israel — Berlim, só em 2024, autorizou exportações superiores a 300 milhões de euros. É um silêncio cúmplice, mascarado de diplomacia.
Já os EUA vetaram repetidas resoluções da ONU por cessar-fogo, mantendo o fluxo de armamento. Gore Vidal, um dos mais lúcidos intelectuais americanos, alertava há décadas para a corrosão moral do império.
Em obras como Perpetual War for Perpetual Peace ou Imperial America, descreveu uma nação dominada por elites militares e financeiras, cujo modelo assenta na guerra perpétua e na amnésia cívica. “We are the United States of Amnesia”; “We learn nothing because we remember nothing” (Gore Vidal). A crítica era civilizacional: o império destrói povos e corrói os valores que diz defender.
Hoje, a Europa tornou-se reflexo dessa decadência: uma potência moralmente falida, que apoia guerras que não compreende, ignora crimes que deveria denunciar e abdica da sua autonomia. O genocídio em Gaza será lembrado — e também a apatia que o permitiu. Porque, como lembrava Vidal, nada é mais perigoso do que um império em negação. E nada mais trágico do que aliados que, sabendo, escolhem o silêncio.
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990