Opinião

A relevância de sorver os clássicos

11 jun 2021 15:50

O papel da literatura é construtivo dos comportamentos e vital na reedificação da identidade pessoal e do processo de sobrevivência

Evoco a leitura dos clássicos e a cumplicidade de uma troca de correspondência com o Professor Doutor Carlos Ascenso André, por ocasião da sua épica, esplendorosa e tão relevante façanha, que porventura passou despercebida do panorama literário português: a tradução da Eneida, decorrido o ano 2020 em que a pandemia se instalou entre nós.

A arte de tradução duma epopeia central na poesia universal é, em si mesma, um trabalho insigne, que somente labor e ensejo de um homem com a determinação e a genialidade de um poeta poderia alcançar.

A magistralidade deste ofício de vários anos é de tal ordem suprema que convidará os mais renitentes a mergulhar nos escritos clássicos, a deleitar-se com os vocábulos, a intuir os versos e a sorver os livros que Virgílio ali verteu.

Ler os clássicos proporciona (tal como um jogo de sonhos), uma nobre experiência vicariante. Para além de nos oferecer prazer, explicável pelo modo de “simulação” do cérebro face às narrativas, educa-nos inconscientemente (enriquecendo a nossa memória implícita), sem os riscos da experiência directa, levando-nos a conviver com uma espécie de profecia vivenciada.

Pela imersão nesses escritos, reavivamos na imaginação uma maior diversidade de situações, além daquela que experimentamos no plano concreto.

A maior parte dos mitos e dos textos sagrados - onde se incluem as obras-primas da literatura, organizam-se como narrativas moralistas que teriam, como a maior parte das epopeias, uma função de encorajamento à modulação da ética e consciência civilizacional.

As narrativas (autobiográficas) são influenciadas por estruturas “extraídas” (in)conscientemente dos textos em que estamos imersos.

O papel da literatura é construtivo dos comportamentos e vital na reedificação da identidade pessoal e do processo de sobrevivência.

E pode modificar a compreensão que o leitor tem de si mesmo, permitindo a identificação metafórica com certas personagens, excertos ou secções do conteúdo.

Independentemente da sua idade ou nível sociocultural, leitores envolvidos nos processos dirigidos a um objecto literário, por exemplo, poemas dispersos ou versos, geram processos de mudança.

Refiro-me a componentes não exclusivamente psicológicos como a “transportação”, o “fluxo” e a “atenção selectiva”, relacionados com a necessidade dos leitores, a “simulação dos sentimentos dos outros” e a “identificação e aliança com personagens”, experimentando empatia ou repulsa, apreendendo “competências sociais”.

Por outro lado, as “competências de análise”, o “preenchimento”, a “organização de experiências”, a “memorização de informações”, relacionadas com a necessidade de activarem estratégias de “resolução de problemas”, o “desenvolvimento moral” e a “identidade”, não esquecendo a “mudança de crenças e atitudes” e até a “confirmação de crenças compartilhadas”, numa identidade alinhada com valores humanísticos, é um extraordinário manancial de recursos que recolhemos do simples acto de ler.

É, por tudo isto, que o leitor se torna num co-autor.