Opinião

A criança é o pai do homem

24 mai 2022 10:06

A utilização de aparelhos digitais antes dos 24 meses de idade não é recomendada, pois as crianças necessitam de interagir com os cuidadores e explorar o meio que os rodeia para adquirirem capacidades cognitivas, emocionais, motoras e de linguagem.

O primeiro texto que escrevi para este jornal falava do tempo passado pelos jovens ao computador e outros ecrãs. Estávamos em junho de 2020, pandemia pura e a tecnologia abria-nos, ainda que fechados em casa, a porta para a rua. 

Era digital, geração Z que nunca viu o mundo sem net e pandemia. Juntava-se a fome com a vontade de comer. Os ecrãs, há muito privilegiados por esta faixa etária, assumiam-se como os best friends. O presencial não era necessário e na altura “proibido” até.

Passaram quase dois anos e para além destes jovens que vos falava, filhos já da tecnologia e da modernidade dos tempos, temos talvez agora os também filhos da pandemia. Contudo, mais novos, pequenitos ainda, para os quais a normalidade foi quase sempre ver olhos sem rosto.

A máscara escondeu a verdadeira expressão  de muitas emoções e os confinamentos impediram carradas de oportunidades de interação entre os pares. Estas limitações, na verdade, não terão sido muito notadas pelos mais novos, já que foi sempre assim desde que cá chegaram. Mas o impacto começa a sentir-se. 

Parece que têm chegado às consultas de desenvolvimento muitos miúdos pequenos com fraca linguagem, pobre interação social e com birras que só desaparecem com os telemóveis. Há crianças que do ponto de vista do neurodesenvolvimento apresentam de facto uma predisposição para estas características, mas a casuística tem aumentado e isto faz-nos pensar nos efeitos colaterais das “regras” a que estivemos sujeitos com a Covid 19.      

Para além da máscara e da privação dos contextos sociais, surgiu o tempo passado em casa e se antes da pandemia já era difícil limitar a utilização de ecrãs pelas crianças, com o teletrabalho a coisa complicou-se. Como conseguir ser produtivo com crianças pequenas a reivindicar a nossa atenção? Não é fácil. De todo! E apesar das recomendações da Associação Americana de Pediatria (AAP, 2016) e da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2019) desaconselharem os ecrãs até aos dois anos de idade, a verdade é que na prática ninguém fez isso. 

E qual o perigo desta exposição nesta idade? 

Os peritos da AAP dizem que a utilização de aparelhos digitais antes dos 24 meses de idade não é recomendada, pois as crianças necessitam de interagir com os cuidadores e explorar o meio que os rodeia para adquirirem capacidades cognitivas, emocionais, motoras e de linguagem. Falam também da imaturidade simbólica, característica desta faixa etária que ainda não permite distinguir a fantasia da vida real, recomendando que o tempo de ecrã, dos dois aos cinco anos de idade, seja limitado a apenas uma hora por dia, com conteúdos adequados à fase de desenvolvimento da criança e sob supervisão e mediação dos adultos.

Na realidade, o que acontece mesmo? Durante a fase inicial do seu desenvolvimento, uma criança apresenta mais do dobro das sinapses (conexões entre os neurónios) que um adulto. Como não se conhece ainda o percurso de vida que a criança tomará, estas conexões são uma espécie de reserva e de garantia de que nada falhará. Acontece que a certa altura existe uma espécie de seleção natural ou melhor dizendo existe um synaptic pruning: o cérebro reconhece as sinapses mais utilizadas como as mais necessárias e elimina aquelas que entende como desnecessárias porque não utilizadas. Assim se explica, por exemplo, que um chinês não consiga dizer alguns sons próprios das línguas mais ocidentais. No período considerado crítico para o neurodesenvolvimento, dos zero aos cinco anos, esses estímulos não lhe foram apresentados, por isso os neurónios e sinapses por eles responsáveis foram eliminados porque assumidos como inúteis. Use it or lose it.

Isto quer dizer o quê? Que no período crítico de pruning as crianças estão muitas vezes passivamente agarradas ao ecrã, que não exige linguagem, interação ou socialização, perdendo-se um infindável mundo de oportunidades, já que é nesta altura que se estabelecem relações de vinculação seguras e comportamentos saudáveis, para além de ser o momento ideal de impregnação social, fonológica/linguística.

O grande brinquedo das crianças deverão ser os pais e não os tablets, telemóveis ou outros que tais. Os primeiros anos são fundadores. A linguagem, a atenção, as competências sociais, a gestão das emoções… tudo ganha forma no início. Há coisas que só se adquirem no frente a frente, na relação e no envolvimento emocional, e essas aprendizagens são vitalícias. Haja moderação na exposição aos ecrãs. Haja media free times e haja também covisualização, já que a interpretação e escolha dos conteúdos visualizados pela criança minimizam o risco de utilizações inapropriadas, potenciam a comunicação e o desenvolvimento da linguagem, para
além de aumentarem a qualidade e tempo de interação entre pais e filhos.

É importante que os miúdos saibam aborrecer-se e há momentos em que de facto nada há para fazer a não ser estar sem fazer nada.