Sociedade

O antigo sem-abrigo que faz alicerces e lança pontes contra a exclusão  

16 fev 2020 10:33

Jorge Cardinali é mágico, e na sua algibeira, nunca faltam lenços, nem truques cómicos, mas também é arquitecto e construtor de pontes entre pessoas

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Jorge Cardinali foi ao inferno, perdeu quase tudo, mas reconquistou o amor próprio
Ricardo Graça
Jacinto Silva Duro

Jorge é Cardinali e Cardinali é circo e magia. É um sobrenome que faz sonhar com o circo, com malabaristas, trapezistas com e sem rede, palhaços sérios e bufões, e... ilusionistas. Mestres em fazer com que aquilo que não é de verdade o seja aos olhos e na mente de quem vê. 

Mas Jorge, que pertence a essa famosa família italiana cujo apelido, em Portugal pelo menos, é verdadeiro património cultural imaterial e sinónimo das artes circenses, é mestre da vida real. 

O destino, que lhe foi pouco gentil e o atirou durante muito tempo para a condição de invisível da sociedade, deu-lhe têmpera, ferramentas e a oportunidade de ajudar o semelhante a elevar-se à categoria de cidadão de pleno direito. 

Um caminho pleno de escolhos, que o próprio Jorge também trilhou para fugir à existência de toxicodependente e sem-abrigo a que, durante anos, se viu condenado.

Desde que, há seis anos, se juntou como voluntário, às equipas de rua de apoio social, que apoiam os cidadãos que a nossa sociedade condena à invisibilidade. 

Há um ano, tornou-se "mediador de pares"e funcionário, a meio tempo, da InPulsar -  Associação para o Desenvolvimento Comunitário, que tem como missão contribuir para a inclusão social e económica de populações em situação de vulnerabilidade e exclusão.

"Faço a ligação com os sem-abrigo ou com quem tem dependências de drogas ou de álcool, num projecto de redução de riscos financiado pelo SICAD. Integro as equipas de dia, constituídas por técnicos, estagiários e voluntários, que trabalham na cidade de Leiria. Tenho uma relação muito boa com todos os que estão na rua... Estão sujos? Cheiram mal? Não tenho problemas em dar-lhes um abraço. Cai-lhes melhor um pouco de afecto e uma palavra amiga, do que uma sandes. Mas isto é um trabalho de equipa, onde todos somos importantes."

Mesmo quando não está a trabalhar, na mochila, leva sempre alguns kits para substâncias injectáveis e recolhe os que não foram devidamente descartados e acondicionados. 

O mediador de pares visita, regularmente, quem não tem tecto, indagando das suas necessidades e saúde e há sempre ocasião para uma conversa sem pressas.

Da boca do mágico, jamais saíram palavras com o objectivo de levar alguém a deixar a adicção, porém, isso não quer dizer que não fale abertamente da sua própria história.

"Quero que eles pensem 'é pá! O Cardinali conseguiu, se eu calhar também consigo'. Mas tem de partir deles. Não lhes martelo a cabeça. Quando me faziam isso, entrava por um ouvido e saía pelo outro.”

Nas suas resoluções para 2020, que agora mete-se o trabalho de animar as festas de Natal e o Ano Novo, meteu na cabeça que vai girar pratos a favor da inclusão.

"Quero fazer com que as pessoas pensem: ‘se ele consegue, eu também consigo ultrapassar este desafio que está à minha frente!’" 

Além de ser mediador de pares, na InPulsar, onde também colabora no projecto Giro Ó Bairro e no Redes na Quint@, na prevenção de risco de jovens e integração da comunidade cigana, é vice-presidente da Mesa do Conselho do Núcleo Distrital de Leiria, da EAPN – Rede Europeia Anti-Pobreza/Portugal e faz espectáculos de magia aos fim-de-semana. Tem uma parceria com o palhaço musical Benny Clown.

"Eu é que ou 'o empresário', arranjo os espectáculos e desafio-o."

“Tenho orgulho da família que sou”
"Os primeiros Cardinali vieram de Itália, na década de 1880. Estamos em todo o mundo, mas, só em Portugal, é que nos dedicamos ao circo. Tenho uma prima que é artista de cinema em Hollywood e outra, na Argentina, que é actriz de cinema e novelas", conta.

Já foi palhaço – alegre, porque está de relações cortadas com a tristeza - e é recordista mundial de fazer girar pratos. Em casa, afixado numa parede, em lugar de destaque, há um diploma do Livro dos Recordes da Guiness.

"Em breve, quero bater novo recorde e estar 24 horas a girar pratos", anuncia, adiantando de rajada, que já entrou em três eventos do Impossible Challenge. “Mas isso já sabem...”, diz, de sorriso envergonhado. 

"A vida de artista anima-me. Fascina-me fazer rir as pessoas. Sinto orgulho da família Cardinali que sou... não é da família que tenho, mas da que sou. Ainda hoje, ao fim de dez anos, na família, sou o 'drogado'. Mas essa família, nem imagina o trabalho que hoje faço... nem querem saber."

Os olhos brilham, o sorriso rasga-se e a voz atrapalha-se a falar do filhos. São o seu maior orgulho. “Tenho uma relação muito boa com eles e penso que eles têm orgulho na pessoa que sou e no trabalho que faço, a ajudar outras pessoas.” 

O destino quis que Jorge Isidro Cardinali da Silva nascesse em Penacova, distrito de Coimbra, há 55 anos, e fosse o quarto de dez filhos de uma família de saltimbancos. Os pais conheceram-se, claro, no circo.

O avô materno, Horácio, era dono do Circo Cardinali, título que juntava ao de palhaço.

"Palhaço pobre, porque era divertido", conta.

O pai, António Silva, era o ilusionista Silvani, e a mãe, Adelaide Cardinali, prima direita do famoso Victor Hugo Cardinali, era contorcionista e a acrobata no topo da escada humana, número onde participava com os cinco irmãos. 

Quando a mãe tinha 16 anos, saiu do Circo Cardinali com o marido e ambos abraçaram uma vida de "saltins", artistas independentes que iam de terra em terra a imprimir espanto e admiração nas faces de quem assistia aos espectáculos de rua. 

A ideia de uma existência saltimbanca, hoje, até pode parecer romântica, mas a vida do casal e dos filhos era penosa. "Lembro-me de ser pequenito e ir, de aldeia em aldeia, ao lado do meu pai, na nossa carrinha. Estávamos dois dias aqui, uma semana acolá e, pelo meio, ia à escola."

Um dia, António Silva colocou em prática uma ideia que, há muito, lhe andava metida na cabeça. Parou em Leiria e inscreveu os filhos mais velhos num colégio. Os rapazes já tinham concluído o ensino primário e estava na hora de lhes dar uma outra educação. 

O mesmo, eventualmente, aconteceria a Jorge, mas ainda não seria dessa vez que o mediador de pares estabeleceria uma ligação à cidade do Lis. Quando se deu o 25 de Abril, frequentava um colégio em Aveiro, onde concluiu o Ciclo Preparatório e, depois, seguiu para o Secundário.

“Faz-te à ‘vidinha’”
"No primeiro ano na Escola Comercial e Industrial, chumbei e o meu pai tirou-me dos estudos. Ele pôs-nos a todos fora de casa e eu sai com 16 anos. Fui viver para Lisboa com uma tia, irmã da minha mãe, que estava no parque dos artistas, que me disse logo, para me 'fazer à vidinha'. Comecei a fazer umas coisas de magia e a trabalhar nos cafés. Aprendi tudo sozinho. O meu pai, que era um homem muito inteligente e talentoso na sua arte, nunca ensinou nada aos filhos", diz. 

O primeiro truque fez foi fazer desaparecer um lenço das mãos. Com ele, adentrava pelas horas malvadas e calcorreava quase todos os cafés de Lisboa. Pedia boleias e quase todos os dias, tinha novos truques que lhe valiam uns escudos e que lhe enchiam o bolso. "Eu gostava... ainda hoje gosto desse contacto directo com as pessoas."

A vida de adulto começava a sorrir ao quarto filho de António e Adelaide. Conheceu uma menina e, como acontece quando o amor é verdadeiro, nasceu o desejado filho, um jovem hoje com 30 anos, motivo de orgulho de Jorge. 

“Já tinha conseguido poupar o suficiente para comprar uma rulote e levava uma vida de saltim, a fazer espectáculos de norte a sul de Portugal." Sempre que o mágico e a sua carrinha apareciam nas mais pequenas aldeias do País, tudo parava.

O "circo" tinha assentado arraiais e o serão seria de festa nos cafés, nas associações recreativas e até na rua, desde que a noite fosse de ameno Estio. "Quando havia o escudo, podíamos trabalhar todos os dias num café e ganhar o suficiente. Veio o euro e... mentira. As pessoas deixaram de sair e agora só aparecem ao fim-de-semana."

A vida singrava, porém, o destino tinha outros planos para o jovem, quando este completou 25 anos. Passados dois anos, em 1991, a mulher adoeceu e faleceu. Um cancro nos pulmões haveria de arrancá-la de Jorge...

"Morreu-me nos braços. Foi aí que fugi. Refugiei-me na heroína. Senti-me desamparado, sem ajuda da minha família. 

Da primeira vez que experimentou heroína, não lhe agradou. "Um rapaz conhecido arranjou a droga...” Hoje, olhando para trás, não sente que tivesse sido influenciado por "más companhias". 

“Só somos influenciados se quisermos. O que me levou à droga foi a perda do primeiro grande amor da minha vida, a tristeza, a solidão, a responsabilidade e a ausência de apoio." 

Nos sete anos seguintes, apesar do vício, Jorge lutou, preservou. Quando chegou o tempo de matricular o filho na primária, fixou-se em Leiria, procurando o apoio das irmãs, que viviam na cidade. Vivia com uma nova companheira, de quem teve o segundo filho. 

Quando esta se foi embora, sentiu que caia no fundo de um poço. A heroína começou a comandar-lhe a vida.

"Desmazelava-me, não fazia espectáculos todos os dias. Acabei por ficar na rua e fui viver com os meus dois filhos, o mais velho teria 9 anos e o mais novo, três, no meu carro, durante quase um ano. Ao fim desse tempo, tive a sorte de os conseguir colocar no Lar Flor do Lis, junto aos Capuchos, em Leiria. A Segurança Social já andava de olho no 'pai que vivia num carro com os dois filhos'. Como me antecipei, não perdi o contacto deles e eles não foram separados."  

O refúgio que tinha procurado em Leiria, junto da família, foi apenas uma miragem jamais concretizada. Os anos foram passando e Jorge continuou a afundar-se.

Deixou de trabalhar, deixou de ter dinheiro, perdeu o carro, tornou-se sem-abrigo e começou a arrumar os carros dos outros.

"Entre 20 arrumadores, 15 éramos consumidores. Os restantes sofriam de doença mental ou eram alcoólicos. O pior é que a heroína torna-nos desmazelados. Indiferentes. Andei naquilo dez anos... é uma vida, não é?"

Vivia de dose em dose e refugiava-se do frio em casas devolutas. "Estava 'agarrado' à heroína. A pior coisa deste vício são as ressacas. As ressacas de heroína são terríveis."

Com o passar dos anos, Leiria também se habituou a – não - ver Jorge Cardinali a arrumar carros.

Tornou-se numa das figuras mais reconhecidas da cidade, mesmo que, bastas vezes, o tratassem como se fosse uma não presença. Um fantasma invisível.

Mas como sempre foi cortês e bem educado, aquele jovem que "orientava lugares" e "pedia moedinhas" para se sustentar a si e ao vício, era tolerado.

Entregue a si mesmo, divorciou-se até do amor-próprio. "Uma vez, estive dois ou três meses sem tomar banho. Sabia que cheirava mal, mas não me importava com nada. Só tinha um objectivo; arranjar dinheiro para tirar a ressaca. Como não sabia roubar, fui arrumar carros. E ganhei um certo estatuto como arrumador de carros.

"Numa noite de sábado, no parque da Sé, fiz 195 euros. No domingo de manhã, já não havia nada. Tinha de se fazer “à vidinha” outra vez.

"Guardava o dinheiro para o quarto e beber um cafezinho.  A gente nem pensa em comer. Compra um pão, um bolo e está a andar", diz. 

Mas houve pessoas que lhe estenderam a mão e se preocuparam com ele. Recorda uma senhora que, durante meses, todos os dias, lhe levava um café quentinho e uma sandes para pequeno-almoço.  

“Verdade! Quando saí da rua, ela deixou de me ver e foi-me procurar e houve quem lhe dissesse 'o Cardinali morreu'. Passado uns tempos, encontrámo-nos na rua e ela mudou de cores uma carrada de vezes. Ficou muito feliz por mim!"

Durante o período em que viveu a pedir que lhe orientassem moedinha a moedinha, perdeu tudo, até apenas se sobrar a si mesmo. Ou nem mesmo isso. Afastou-se da família, perdeu anos de vida.

"Perdi tudo. Até as poucas fotografias que tinha e o material de mágico. Mas tentei estar sempre presente na vida dos meus filhos. Dei a responsabilidade enorme ao mais velho de tomar conta do mais novo. Ele, tão novo, entendeu. O mais velho é inteligente, nunca fumou um cigarro sequer. Ainda hoje, é o protector do irmão."

Segunda oportunidade
A procura de uma nova vida, não aconteceu por influência divina ou por um qualquer momento crucial de ruptura. A Jorge, a revelação pareceu suave. Quase corriqueira.

"Acordei uma manhã, no meu quarto de pensão e... pensei: 'estou farto disto. Tenho saudades da magia, tenho saudades do riso das pessoas… tenho saudades de mim.' Recorri ao Projecto Porta Aberta, que trabalhava com os sem-abrigo e ao Centro de Atendimento a Toxicodependentes, actual Centro de Respostas Integradas.

Primeiro, saiu da rua com o apoio do filho mais velho. "Ele disse-me: 'está tudo bem cota. Mas agora, aqui, quem manda sou eu. Queres que te ajude? Tens de cumprir as minha regras'. Concordei e segui para a etapa seguinte. Tratei da Segurança Social, fui ao médico, fiz exames e análises... e, no dia 4 de Janeiro de 2010, o meu filho deixou-me no Sobral Cid, em Coimbra, onde fui internado para fazer a desintoxicação. Não quis passar pela metadona, que também é adictiva." 

Era para estar apenas uma semana, mas ficou 15 dias.

"Tinha na cabeça de que ia sair do vício e via-me fora dele. O primeiro dia passou-se bem. O segundo foi espectacular. Até voltei a fazer espectáculos de magia. Claro, estava cheio de medicação", brinca.

Dos oito homens e duas mulheres que entraram no mesmo dia, apenas três conseguiram vencer o vício. "Os outros perderam-se, uns morreram outros voltaram...", diz, com um nó na garganta.

No dia em que saiu, à porta da clínica, estava o filho. "Cota, isto continua a ser como eu digo", foram as primeiras palavras. Nos primeiros tempos, não saía de casa para ir ao café, sem ter companhia. "Ele não queria que eu recaísse." E a tentação nunca estava muito longe.

"Numa ocasião, dei comigo com 20 euritos no bolso... Tinha o número de telefone de uma pessoa amiga e o do dealer. Tive alguém - uma estrelinha - que me meteu a mão. Liguei para essa pessoa amiga, que me foi buscar. Se tenho ligado para o dealer, não estaríamos aqui a conversar. Não podemos pensar que é só hoje, que é só uma excepção."

Após deixar o vício, segue-se a etapa seguinte: reconquistar a confiança dos outros.

Jamais evitou os locais e as pessoas que dantes faziam parte da sua vida nas ruas. "Tinha um amigo, que já faleceu, e ele consumia. Eu ia visitá-lo, levar-lhe tabaco e ele consumia à minha frente. Nunca me tentou para consumir." 

Mas o contrário, acredita, já aconteceu. Toxicodependentes que se sentiram “tentados”, por Jorge, a libertar-se dos grilhões da droga. "Acho que pensam que, se o Jorge conseguiu, nós também conseguimos."

Só após seis meses a sentir-se limpo, começou a equacionar voltar à magia em frente a um público. "Era mais fácil fazer assim uns cobres, do que com um emprego, porque tinha um rótulo e as pessoas não confiam em nós. Fui fazer magia com o meu irmão Paulo, para experimentar." 

Ingressou ainda num programa temporário da autarquia de Leiria que dava emprego, na manutenção dos espaços verdes da cidade, ao "pessoal que estava na rua".

Durante um ano, passou cinco dias por semana a semear, a fazer germinar flores delicadas e a podar arbustos e árvores frondosos, um pouco por toda a cidade.

A sua prestação e empenho não passaram despercebidos e fez parte de uma extensão da iniciativa, por mais nove meses, após o fim do programa da Câmara. 

Ingressou na EAPN, de que acabou por se tornar representante por Leiria, e no Conselho Local de Cidadãos e aproveitou o tempo no programa da autarquia para fazer o 9.º ano de escolaridade, à noite, em regime de RVCC.

"Eu era um cromo em computadores e tive muita ajuda de uma sobrinha. Mas do que me lembro é das expressões, quando me identifiquei ao restante grupo de alunos. Disse que era mágico, palhaço e que me chamava Cardinali. Reconheceram todos o nome. Tenho muito orgulho de ser um artista, do meu nome e daquilo que faço."

Os companheiros da sala de aula acolheram-no com carinho, apoiaram-no e ajudaram-no, quando tinha dificuldades na compreensão das matérias. "Se não fosse por eles, se calhar não teria acabado o RVCC." 

Agora, após mais uma jornada nas equipas de apoio social, o ritual quotidiano repete-se ao entardecer.

A caminho de casa, ao volante, o mediador de pares avalia o dia, o que fez, as pessoas com quem falou, as palavras ditas e as muitas escutadas.

“Posso dizer que sinto sempre que fiz o meu trabalho e ajudei os outros o melhor que consegui.” 

Artigo incluído na colectânea Para Onde Vai o Tempo? Relatos e Ficções à volta de contextos de vulnerabilidade, apresentado a 15 de Fevereiro de 2020, no m|i|mo - Museu da Imagem em Movimento, em Leiria