Sociedade

Ministério Público diz que era real a possibilidade de salvamento das vítimas nos incêndios de Pedrógão Grande

12 nov 2022 15:42

Recurso do Ministério Público contesta a absolvição de sete arguidos e pede a nulidade do acórdão sobre os incêndios de Pedrógão Grande

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Os bombeiros acompanharam várias sessões do julgamento em Leiria
Ricardo Graça
Redacção/Agência Lusa

O recurso do Ministério Público do acórdão do Tribunal Judicial de Leiria que absolveu os 11 arguidos do processo dos incêndios de Pedrógão Grande considera que a possibilidade de salvamento das vítimas era real.

O Ministério Público (MP) recorre da absolvição de sete arguidos, incluindo o comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande, Augusto Arnaut, e o antigo presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, Valdemar Alves.

No recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o Ministério Público pede a nulidade do acórdão de primeira instância proferido no Tribunal de Leiria.

“A possibilidade de salvamento das vítimas, caso os deveres tivessem sido cumpridos, não era assim teórica, mas real – como se atesta, não nos cansamos de realçar, pela existência de sobreviventes, apesar das omissões dos arguidos”, lê-se no recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra que pede a condenação de sete dos 11 arguidos absolvidos em primeira instância.

Para o MP, “o tribunal parece aceitar que um hipotético cumprimento dos deveres jurídicos pelos arguidos não exerceria qualquer influência sobre o resultado – mas tal não se verificou, até pela circunstância de haver sobreviventes”.

“Caso contrário, estar-se-ia a admitir que a violação dos deveres de cuidado era indiferente e completamente inútil para a sorte das vítimas” e que tal “equivaleria a renunciar às normas de cuidado precisamente num evento em que o cumprimento dos deveres de cuidado eram mais prementes, ou seja, no decurso de um incêndio com as características descritas”, escreve a procuradora da República Ana Mexia.

Segundo o MP, “as omissões dos arguidos enquadram-se numa potenciação do risco” e, “ao não cumprir com os deveres que se lhes impunham, tais omissões aumentaram o risco de produção de lesões para as vítimas, na sequência da exposição ao incêndio”.

“Se as vítimas se viram ‘encurraladas’ pelo fogo, admitir que o cumprimento das normas de cuidado era indiferente para o salvamento delas é admitir factos hipotéticos excludentes da própria ilicitude, é adotar um entendimento segundo o qual as vítimas não mereceriam mais a protecção jurídico-penal nas situações em que foram surpreendidas pelo fogo”, lê-se no documento.

O recurso acrescenta que “a perseverança na função de tutela dos bens jurídicos que o Direito Penal assume, em qualquer situação, é em razão do princípio constitucional da dignidade humana. Este princípio basilar não pode ceder em qualquer circunstância, ainda para mais quando os bens jurídicos da vida e integridade física das vítimas não estavam numa situação irremediavelmente perdida, como a prova demonstrou pela existência de sobreviventes”.

O Tribunal Judicial de Leiria absolveu, em 13 de Setembro, os 11 arguidos num julgamento em que estavam em causa crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência, alguns dos quais graves, ocorridos nos incêndios de Pedrógão Grande, em Junho de 2017. No processo, o MP contabilizou 63 mortos e 44 feridos quiseram procedimento criminal.

Ministério Público recorreu da absolvição de sete arguidos

O MP não recorreu da absolvição dos funcionários da antiga EDP Distribuição (atual E-REDES) José Geria e Casimiro Pedro, do ex-presidente da Câmara de Castanheira de Pera Fernando Lopes e do actual presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos, Jorge Abreu:

No entanto, recorreu da absolvição e pede a condenação de outros sete arguidos: o comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande, Augusto Arnaut, o ex-presidente e o antigo vice-presidente do município de Pedrógão Grande, Valdemar Alves e José Graça, respectivamente, a então responsável pelo Gabinete Florestal da autarquia, Margarida Gonçalves, e os três funcionários da Ascendi (José Revés, Ugo Berardinelli e Rogério Mota).

A maioria das vítimas mortais foi encontrada na Estrada Nacional (EN) 236-1, que liga Castanheira de Pera a Figueiró dos Vinhos. A subconcessão rodoviária do Pinhal Interior, que integrava esta via, estava adjudicada à Ascendi Pinhal Interior, à qual cabia proceder à gestão de combustível.

No recurso agora conhecido, de 467 páginas, o MP sustenta, entre outros aspectos, que Augusto Arnaut não pediu atempadamente o instrumento Arome (previsão meteorológica específica para um local) e não informou cabalmente o Comando Distrital de Operações de Socorro de Leiria sobre a evolução do incêndio, pelo que deve ser condenado pela totalidade dos crimes que lhe foram imputados (63 crimes de homicídio e 44 de ofensa à integridade física, alguns dos quais grave, e todos por negligência).

Quanto aos funcionários da Ascendi, o MP quer a condenação pela “totalidade dos factos e pela imputação da totalidade dos crimes relativos às vítimas mortais e feridos” que lhe estavam imputados no despacho de acusação, nesta parte também secundado pelo juiz de instrução criminal (34 crimes de homicídio e sete de ofensa à integridade física, cinco deles graves, todos por negligência).

Por fim, quanto a Valdemar Alves, José Graça e Margarida Gonçalves, o MP pede a sua condenação “somente pela omissão de deveres de gestão da faixa de combustível” em quatro vias, que terão provocado a morte de seis pessoas.

Os incêndios de Pedrógão Grande deflagraram na tarde de 17 de junho de 2017.

Segundo o despacho de acusação, os fogos de Escalos Fundeiros e Regadas foram desencadeados por descargas elétricas de causa não apurada com origem na linha de média tensão Lousã-Pedrógão, da responsabilidade da antiga EDP Distribuição, em troços junto aos quais os terrenos estavam desprovidos de faixa de protecção e onde não tinha sido efectuada a gestão de combustível.

Estes dois incêndios acabaram por se juntar, ao final do dia, num processo designado de “encontro de frentes”, que conduz a um mecanismo de comportamento “extremo de fogo”, e unificado, progrediu “com grande rapidez e intensidade”, chegando à EN 236-1 e a outros locais de Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e Pedrógão Grande, os concelhos mais fustigados.

No acórdão, lido em 13 de Setembro, o colectivo de juízes de Leiria não deu como provado que os dois incêndios tenham sido desencadeados por descargas eléctricas, nem que junto aos troços da linha de média tensão onde aquelas ocorreram os terrenos estivessem sem faixa de protecção.

Para o tribunal, não se provou também que as mortes e os feridos “tenham resultado, por acção ou omissão, da conduta de quaisquer dos arguidos”.

Por outro lado, considerou provado que, “resultante da combustão de elevada carga de material combustível e muito inflamável, e encontro de frentes de fogo, se verificou” a criação de uma “coluna convectiva/outflow convectivo, com aumento de projecções e aumento de velocidade de propagação do fogo e formação de tornados de vento e tornados de fogo”, segundo uma nota à imprensa do tribunal sobre o acórdão.

Na nota, referiu-se ainda que ao início da noite desse dia, na zona da EN 236-1 “verificou-se o colapso da descrita coluna convectiva do incêndio/downburst”, o que resultou “numa ‘chuva’ de projecções e gerou vento de grande intensidade que, transportando partículas de fogo e incandescentes, após atingir o solo, soprou de forma radial em todas as direcções, com velocidades da ordem dos 100 a 130 quilómetros/hora”.

Os magistrados judiciais consideraram que esta situação apresentou “valores de intensidade do fogo (radiação) da ordem dos 60.000” quilovolts/metro, além da longitude da chama até 80 metros, com temperaturas da ordem dos 900 a 1.200 graus Celcius, e fumo denso que anulava a visibilidade”.

“Mais resultou provado que a generalidade dos óbitos verificados, designadamente na EN 236-1, e das lesões físicas sofridas foram consequência direta do outflow convectivo e/ou do downburst verificado”, explicou a nota de imprensa, assinalando que este foi “um fenómeno pirometeorológico extremo, raro e imprevisível”.

Ministério Público pede nulidade do acórdão que omite depoimento de 74 testemunhas

O MP considera que o acórdão que absolveu os 11 arguidos do processo dos incêndios de Pedrógão Grande omitiu o depoimento de 74 testemunhas, segundo o recurso para a Relação que pede a nulidade da deliberação.

O MP recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra das absolvições, pelo Tribunal Judicial de Leiria, de sete arguidos e ainda, “com fundamento na nulidade do acórdão, por não se ter pronunciado sobre a totalidade dos factos submetidos a julgamento, por omissão de indicação e análise crítica da prova e ainda por contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova”.

Segundo o documento, o colectivo de juízes “omitiu qualquer indicação do depoimento de diversas testemunhas”, enumerando um total de 74.

“Na sua motivação/fundamentação, o acórdão é totalmente omisso quanto à indicação e, por conseguinte, exame crítico do depoimento destas testemunhas”, lê-se nas conclusões do documento (de 467 páginas), assinalando que algumas “sofreram ferimentos”.

“As testemunhas (…), para além dos ferimentos que sofreram, descreveram, também, o estado da vegetação junto das vias, a dinâmica dos eventos daquele dia e as responsabilidades funcionais que incumbiam aos arguidos, não se alcançando porque é que os seus depoimentos não foram indicados na parte da fundamentação do douto acórdão, nem mereceram uma análise crítica (…), pese embora a factualidade julgada como provada a elas respeitante enquanto vítimas”, observa a procuradora da República Ana Mexia.

Por outro lado, o MP contesta a “omissão da valoração e análise crítica” do depoimento do professor Domingos Xavier Viegas, que coordenou o relatório O complexo de incêndios de Pedrógão Grande e concelhos limítrofes, iniciado a 17 de Junho de 2017, do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais.

“Constata-se ainda que, na motivação do acórdão, que o tribunal, para fundamentar a sua convicção, alude genericamente a depoimentos prestados por testemunhas, sem que as identifique sequer, ou sem que indique a sua razão de ciência e sem que faça a devida apreciação crítica”, adianta.

O MP justifica a nulidade do acórdão também com a “omissão de indicação e análise crítica da prova documental” e “omissão de apreciação crítica do teor das declarações prestadas pelos arguidos em sede de inquérito”.

A procuradora da República defende que se verifica “uma escolha selectiva da prova testemunhal e documental, sem critério aparente e objectivo, que justifique que não estejam todas essas provas identificadas e analisadas na motivação do acórdão”.

“Não se alcança porque é que os depoimentos dos ofendidos foram ignorados na motivação da fundamentação, nem, por conseguinte, se aceita a irrelevância para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa e que possam justificar uma omissão de apreciação crítica”, observa, considerando não ser “objectivamente perceptível o processo de formação da convicção do Tribunal.

Nesse sentido, “não se logra avaliar o relevo e o peso probatório integral que as testemunhas supra identificadas tiveram no processo de formação da convicção do Tribunal, nem a prova documental omissa na motivação da fundamentação, nem as declarações prestadas pelos arguidos na fase de inquérito, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos não provados”, acrescenta o MP no recurso.