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Fotografar Palavras, numa simbiose da palavra com a fotografia

27 abr 2017 00:00

Blogosfera: Paulo Kellerman quer “explorar as relações entre palavra e imagem”

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Yuri Lotman, historiador cultural russo do século XX, criou a “biosfera” da palavra, da cultura a semiosfera. Socorreu-se do conceito de fronteira para explicar o seu funcionamento, uma fronteira cultural (código, idioma, comportamentos, etc.) que se cruza e deixa permear com outras fronteiras e assim se dá a semiosis, criação de significado. Significado que, para se formar da interacção de distintas semiosferas, necessita de pontos em comum e pontos divergentes.

Não sabemos se o escritor e poeta de Leiria, Paulo Kellerman, leu Lotman mas o seu mais recente projecto parece ter um toque das ideias deste autor. Chama-se Fotografar Palavras, é um blogue com pouco mais de seis meses que faz chocar as fronteiras semióticas da palavra e da fotografia.

“Chocar”, não num sentido destrutivo, mas numa perspectiva de criação, de “explorar as relações entre palavra e imagem” como explica o autor do projecto.

Kellerman trabalha “a possibilidade de colaborações múltiplas” numa espécie de plataforma, que conta com cerca de 60 participantes, “onde escritores e fotógrafos interagem” com os seus trabalhos.

O interesse do escritor pela relação entre palavra e imagem já se encontrava em livros que foi publicando onde “a pintura sempre esteve muito presente”. A ideia é que este projecto “não seja centrado numa ou duas pessoas, mas uma aposta na diversidade de estilos, abordagens, sensibilidades.”

Dentro da “casa” 

Ao entrar no blogue (fotografarpalavras.blogspot.pt), depressa sentimos a sua simplicidade. Não no sentido de “pobreza”, no abrir de espaço para a riqueza do corpo do trabalho: as fotografias e os textos. Marcadas cronologicamente, todos os dias é, pelo menos, feita uma publicação. 

Passados alguns minutos, já perdidos entre fotografias e textos de todos os estilos e feitios, trespassamos a esfera espacial que já não é a cadeira em que estamos sentados.

Os visitantes mais distraídos, que não passaram os olhos pelo minimalista “o que é isto?” - ao cimo da página do lado direito -, podem julgar que se trata de um projecto do qual Roland Barthes não faria mais do que uma ou duas linhas de apontamentos relativamente aos “pés de fotos”.

Na verdade, se dermos espaço à reflexão subjectiva, somos atingidos pela força de um dualismo construtor. Em números teríamos 1+1=1. O trabalho final, que parece, e na verdade é um todo, resultou da conjugação de duas vidas distintas. Não só pela área artística a que estão vinculadas, mas pela inevitável dualidade dos seus percursos, vivências, referentes, ideais, horizontes...

Os autores dos escritos e das fotografias habitam, por instantes, o mesmo “corpo” artístico com a impossibilidade de nele, verdadeiramente, caberem os dois. Questionados sobre o projecto, dos participantes saltam palavras como “gratificante”, “criativo”, “desafiador” ou “estimulante”.

Os integrantes desta quase família de desconhecidos, encontram, no olhar de quem trabalha as suas contribuições, uma nova interpretação e, por isso, uma nova forma de vislumbrarem o que produziram.

“As palavras lidas já não pertencem a quem as escreveu”

"Idealizar a fotografia que gostaria que ilustrasse o que escrevi, seria condicionar a liberdade do leitor o que, para mim, é impensável. As palavras lidas já não pertencem a quem as escreveu”.

É assim que Andreia Monteiro interpreta o projecto. Escolhe “frases que, uma vez retiradas do contexto, sejam em si histórias” e aguarda a surpresa do resultado. Sublinha que é muito gratificante quando percebe “que havia significado por encontrar” no que escreveu.

Ainda sem o hábito de sair todos os dias de máquina ao pescoço, Teresa dos Santos, que ilustrou com fotos a exposição Crescendo Numa Pedra Revisitada, diz “que as fotos se tornam ilustrações, muitas vezes, metafóricas, das palavras do escritor”.

A fotógrafa explica, entre risos, que o método de trabalho do projecto é uma relação de contratante-contratado. “Recebo a nota de encomenda e forneço o artigo tão breve quanto possível.”

Uma maneira de perceber a dinâmica deste trabalho é talvez pensar em Paulo como um Gepeto (ou como um mediador, como alguns gostam de o caracterizar). Um artesão, não de madeiras e dobradiças, mas de homens e de mulheres que lhe fazem chegar fragmentos das suas vidas materializados em palavras, imagens e interpretações subjectivas.

Um questionador do mundo dos sentidos, buscador das metamorfoses da vida, uma força que espoleta a criatividade dos que envolve. 

Maria João, que contribui para o projecto de trás da câmara, admite que é cada vez mais gratificante ver as suas fotografias associadas a palavras. Salienta a possibilidade que lhe é dada para a “reinterpretação na palavra.” Lança um olhar sobre o texto e interpreta-o através da sua “visão fotográfica”, remata.

Mónia Camacho desvenda, com os seus textos, pistas de inspiração para os caçadores de imagens. Mostra-nos um curioso enredo de mistério no qual os participantes se emaranham.

Tenta imaginar, quando vê a fotografia, quem foi o seu autor. Acredita que não é um jogo de um só sentido. “Imagino que os fotógrafos também façam isso: tentar adivinhar de quem são as palavras pelo estilo.” Quando tem a possibilidade de escolha dos textos ou excertos procura os que tenham força e luz próprias. 

Carla Sousa é uma “repetente”. Foi a fotógrafa mais vezes chamada à selecção de Kellerman. Assume a “fotografia enquanto forma de expressão, linguagem e mapa cartográfico de memórias visuais”.

De objectiva em riste, sente que, frequentemente, as suas imagens lhe devolvem palavras. Procura, “sobretudo, que o binómio texto-imagem resulte por si” e que o conjunto “crie uma nova dimensão.”

PERFIL

Crescendo Numa Pedra Revisitada

Paulo Kellerman, um pseudónimo de Paulo Frias, criado para sabotar os que procuram caras associadas a determinados nomes, é um escritor português, natural de Leiria, que privilegia a narrativa breve. É reconhecido pelos seus contos rápidos e intensos que derrubam a porta com que se fecham as adormecidas interrogações. Deixando o traço da sua narrativa desenhar-se por zonas mais recônditas, começou a dar os primeiros passos preso pela mão que o sustinha, a sua (edições de autor). Fotografar Palavras está na génese da exposição intitulada Crescendo Numa Pedra Revisitada. Conta com a participação de Teresa Marques dos Santos (fotos) e Paulo Kellerman (textos) e pode ser visitada, até 28 de Abril, no Fórum Grandela, em São Domingos de Benfica, Lisboa.

 

* É nesta espera absurda pela liberdade que a cidade me encontra

A fotografia é de Inês Sarzedas e o texto (a cima) de Mónia Camacho. Um produto do projecto Fotografar Palavras