Sociedade

Comissão contra a discriminação racial sinalizou 16 casos no distrito de Leiria nos últimos dois anos

24 ago 2020 17:43

Leiria é o 7.º distrito com mais queixas, participações e denúncias na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR)

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A nível nacional, o número de processos investigados pela CICDR está a crescer desde há seis anos
Bruno Gaspar

Práticas alegadamente discriminatórias ocorridas no distrito de Leiria nos últimos dois anos originaram 16 processos na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), o órgão especializado, em Portugal, no combate à discriminação, violação ou condicionamento de direitos em razão da etnia, cor, nacionalidade, ascendência ou território de origem.

Segundo o Relatório Anual de 2019 sobre a situação da Igualdade e Não Discriminação Racial e Étnica, a CICDR recebeu oito queixas, denúncias ou participações em que a área geográfica é o distrito de Leiria, o mesmo número de casos registados no ano de 2018, mas mais do que em 2017 (o número exacto de casos em 2017 no distrito de Leiria não se encontra disponível, por ser inferior a três, o que obriga a segredo estatístico).

Já depois do fecho da edição impressa do JORNAL DE LEIRIA, a CICDR informou que das oito situações de 2019 referentes ao distrito de Leiria, “três foram encaminhadas para outras entidades em razão da competência específica na matéria, duas foram arquivadas por estarem incompletas e/ou não terem fundamento legal, duas estão na fase de diligências prévias à abertura de processo de contraordenação e uma deu já lugar a processo de contraordenação, que se encontra na fase de instrução”.

Em causa estão factos alegadamente ocorridos em contextos de trabalho, vida social privada, forças de segurança, juntas de freguesia ou câmaras municipais e comércio.

Também a nível nacional, lê-se no Relatório Anual de 2019 sobre a situação da Igualdade e Não Discriminação Racial e Étnica em Portugal, se tem assistido “a um aumento consolidado do número de queixas”, com 436 participações, queixas e denúncias (classificação consoante cheguem, respectivamente, de outras entidades, das vítimas ou de terceiros) recebidas pela CICDR durante o ano de 2019, que representam um acréscimo de 26% em comparação com o ano anterior.

“O aumento de queixas enviadas à CICDR, que tem sido uma tendência dos últimos seis anos, é demonstrativo de uma maior consciencialização para a problemática da discriminação racial, bem como demonstra o conhecimento e reconhecimento crescente dos mecanismos ao dispor”, refere a CICDR no sumário executivo do documento.

Contudo, a Comissão admite que a estatística oficial “não representará o universo real da problemática da discriminação racial e étnica no contexto nacional”. Por um lado, porque outras entidades trabalham também esta temática em determinados contextos”. E, por outro, “porque nem todas as situações são efectivamente alvo de reporte”.

A investigadora Maria José Casa-Nova, da Universidade do Minho, que é membro da CICDR, acrescenta: “Na minha perpectiva, as queixas que chegam à Comissão não espelham a realidade da discriminação [em Portugal]. Pecam por defeito”.

Sobre o crescimento do volume de processos durante o ano de 2019, algumas hipóteses explicativas: “O aumento do número de imigrantes (em 2018, Portugal tinha 480 mil imigrantes em situação legal e, em 2019, tinha 590 mil); associado a esse aumento, o aumento das situações de discriminação que configuram racismo; uma maior sensibilização das pessoas para o fenómeno, predispondo-se mais para a denúncia; um maior conhecimento da existência da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial”.

Os dados de 2019 que respeitam ao local de ocorrência das situações alegadamente discriminatórias mostram que o distrito de Lisboa, os meios de comunicação social e a internet estão ligados a metade (50,2%) das participações, queixas e denúncias à CICDR no ano passado.

No distrito de Lisboa surgem declarados 122 casos (28% do total), mais do que nos distritos do Porto (33), Setúbal (33), Faro (18), Santarém (11), Coimbra (9), Leiria (8), Aveiro (6), Beja (6), Braga (6), Évora (6), Castelo Branco (5) ou Viseu (5).

Notando que todo o racismo é discriminação, mas nem sempre a discriminação é racismo, Maria José Casa-Nova lembra que em Portugal “a maior parte das pessoas imigrantes e descendentes de imigrantes” instalam-se “na área metropolitana de Lisboa”, designadamente, “as que são oriundas da África subsariana”.

Os meios de comunicação social e a internet são o espaço de ocorrência de 97 casos (22,2%) sinalizados pela CICDR em 2019. Segundo Maria José Casa-Nova, “as redes sociais são neste momento um dos maiores meios de propagação do discurso racista, a coberto do anonimato”.

O assunto tem vindo a ganhar espaço mediático, com o tom a tornar-se mais crispado e a envolver os líderes políticos. Na terça-feira, 18, foi divulgada uma carta aberta ao Presidente da República, assinada por 180 escritores de língua portuguesa, num texto “contra o racismo, a xenofobia e o populismo e em defesa de uma cultura e de uma sociedade livres, plurais e inclusivas”. Entre eles, Lídia Jorge, Mário de Carvalho, Francisco José Viegas, Mia Couto, Pepetela, José Eduardo Agualusa, Chico Buarque e Luís Fernando Veríssimo.

Na semana anterior, outra carta aberta, mas de associações e colectivos de afrodescendentes e ciganos, exigiu aos responsáveis políticos que combatam o racismo e o crescimento da extremadireita em Portugal.

Nos últimos meses, há registo de várias manifestações nas ruas, umas para denunciar o racismo, a xenofobia e a discriminação, outras para afirmar que Portugal não é um país racista. Entre elas, a parada Ku Klux Klan com máscaras e tochas diante da sede da associação SOS Racismo, no início de Agosto. Foi aproveitada pelo ilustrador Nuno Saraiva para um cartoon no suplemento humorístico Inimigo Público, em que aparece um polícia a empunhar uma das tochas, o que levou a PSP a anunciar uma queixa-crime contra o Público.

Entretanto, a Polícia Judiciária está a investigar ameaças ao dirigente da SOS Racismo Mamadou Ba, às deputadas Mariana Mortágua, Beatriz Gomes Dias e Joacine Katar Moreira, e a outras pessoas, a quem a organização Nova Ordem de Avis - Resistência Nacional dá um prazo para abandonarem o território português.

Para Maria José Casa-Nova, “a maior mobilização de pessoas com discursos e práticas discriminatórios e racistas contra os imigrantes e seus descendentes, mas também contra a população cigana portuguesa, encontra respaldo numa representação parlamentar antes inexistente”, que as faz sentirem-se “legitimadas para agir de forma mais sistemática e com maior visibilidade”.

A investigadora considera que “não se pode permitir que representantes dos portugueses, como são as deputadas e os deputados, que fazem parte da instituição Parlamento, sejam ameaçados”, porque “quando se ameaça deputados e deputadas de uma instituição como o Parlamento, são os portugueses que são ameaçados”, o que “representa uma escalada no grau e tipo de ameaça”. Defende também que “a prevenção e o combate ao racismo e a todas as formas de discriminação” é um compromisso de toda a sociedade: “A omissão e a indiferença são o palco maior para o seu desenvolvimento e sustentação”.

Barómetro revela percepções

Dados da União Europeia citados pela CICDR (provenientes do Eurobarómetro Especial n.º 493 – Discriminação, publicado em Outubro) mostram que a discriminação com base na origem étnica é considerada “comum” por 67% dos portugueses inquiridos e que a discriminação com base na cor da pele é considerada “comum” por 61%.

Por outro lado, 26% consideram que a origem étnica poderá desfavorecer um candidato a emprego com iguais competências e qualificações, subindo a prevalência para 31% quanto à cor da pele.

Sobre as políticas de combate à discriminação, 52% dos portugueses inquiridos crêem que os esforços feitos em Portugal para combater todas as formas de discriminação são eficazes ou moderadamente eficazes.

"O racismo existe. Ponto final. Não dá para fugir, porque está na rua"

Pela cor da pele, João Reis guarda na memória episódios que preferia esquecer. Ser tratado de maneira imprópria pela mãe de um aluno, que não percebeu a quem se dirigia. Caminhar na rua e ver um idoso a acelerar o passo para entrar em casa, por medo. Detectar olhares e posturas, a sinalizar a diferença. E sofrer insultos, de adeptos adversários, mas, também, de adeptos dos clubes de futebol e hóquei em que trabalhou como preparador físico.

“Ouvi de tudo, do público, nos jogos fora e nos jogos em casa. E de algumas pessoas que conheciam o meu pai e me conheciam a mim desde pequeno”. O que o leva a concluir que, em Portugal, “o racismo existe”. Mesmo escondido, a maior parte do tempo, nas entrelinhas e em ideias falsas como a de um país de brandos costumes. “Há sempre alguma coisa”, explica o professor que cresceu na Marinha Grande e chegou a liderar a associação de estudantes da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leir

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