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Alquimista dos livros, Guilherme José é o mais jovem alfarrabista português

20 fev 2021 19:17

Quando a obra escolhe o leitor, sai-lhe ao caminho

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“A maneira como o livro nos chega é um processo metafísico muito mais profundo do que poderá parecer”
DR
Jacinto Silva Duro

Guilherme José tem apenas 26 anos e, até prova em contrário, é o mais jovem dos alfarrabistas portugueses.

Esta é uma profissão que está a desaparecer, desfocada pela miopia dos tempos e de uma sociedade onde é, demasiadas vezes, motivo de orgulho não se ler e pouco saber-se, numa exacerbação vácua da soberba da ignorância e prepotência nas redes sociais.

“A sério”, Guilherme diz que começou a aventura aos 23 anos, mas, como este é um ofício de vocação e paixão, ela esteve sempre presente desde que nasceu.

O odor apimentado das páginas e o relevo das letras, num Braille que apenas se encontra nos volumes mais antigos, aquecem-lhe o sangue e incentivam-no na senda quotidiana e alquímica de dar vida eterna ao ouro que o chumbo imprimiu no papel.

Vive nas Caldas da Rainha, mas, no Aquele Malfeitor, imagem de cunho pessoal de forte afirmação filosófica e sociológica, vende livros raros ou de conteúdo excepcional para todo o País.

“É difícil desassociar a componente filosófica daquilo que é ser-se alfarrabista”, avisa, logo no início da conversa. No seu caso, assegura, nasceu assim e faz parte da sua essência. “É uma coisa crónica”.

Há dez anos, deu os primeiros passos na quase-alquímica busca incessante pela filigrana das letras raras, quando sentiu necessidade de expandir a sua própria biblioteca. Despegou-se, a custo, de algumas obras para adquirir outras “mais preciosas”.

Aluno do curso de Som e Imagem, na Escola Superior de Artes e Design, Guilherme José começou a trabalhar a vocação, com uma atitude mais vincada, há três anos com a criação do conceito alfarrabista Aquele Malfeitor.

O jovem explica que se trata, simultaneamente, de uma marca pessoal, de uma oposição e de uma representação crítica perante o “espectáculo” que é o actual mercado livreiro, em especial as grandes superfícies, “que busca transformar os livros em simples mercadorias”, sem alma, sem respeito e sem valor intrínseco.

“É possível respeitar os livros e viver disso”, afirma, salientando que, como qualquer verdadeiro alfarrabista, se coloca fora de um mundo obcecadamente materialista e mercantilista.

A casa de Guilherme José serve de depósito do espólio que, desde jovem, tem vindo a amealhar e dos livros destinados à componente alfarrabista da sua vida. O espaço é pouco e o jovem já está a expandir o armazenamento... para a casa da mãe.

Sem loja física, usa as redes sociais e particularmente o Instagram para contactar o público. Não tem catálogo, pois o seu método abre espaço à deusa Fortuna e passa por sugerir, todos os dias, três ou quatro livros aos seguidores na página de Instagram d’Aquele Malfeitor (@aquele.malfeitor) e no sítio www.aquelemalfeitor.bigcartel.com.

“A maneira como o livro nos chega é um processo metafísico muito mais profundo do que poderá parecer”, diz, salientando que, bastas vezes, se não sempre, é a obra que escolhe o leitor, saindo-lhe ao caminho e desvendando-se.

Merch
Homenagem aos escritores

A par do negócio de alfarrabista, ou até para o tornar mais vincado, Guilherme José está a criar uma linha de merchandising e acções para homenagear os escritores que verdadeiramente marcaram a Humanidade com o seu pensamento e luz.

Recentemente, criou uma linha de sacos de pano, com imagem da autoria de Gatuno, um artista das Caldas da Rainha, para Aquele Malfeitor. O sucesso foi tanto que, entretanto, terá de repetir a experiência.

Em Março, abraçará a homenagem aos autores. A primeira acção será um poster, em edição limitada, de Franz Kafka, em Abril, segue-se Baudelaire.

Se tudo correr como previsto, haverá mais escritores e conjuntos compostos por posters, prints e livros.

É uma relação íntima. O mesmo tipo de ligação que transpõe a razão e passa para o plano imaterial permite ao jovem sondar e descobrir verdadeiros tesouros em feiras e vendas de bibliotecas. Nos últimos meses, conta, descobriu alguns.

E se, encontrar primeiras edições, de Photomaton & Vox, de 1979, de Herberto Helder, é como saborear a mais delicada iguaria, por vezes, também se encontram maravilhosas flores no meio dos espinhos.

“Estava a vasculhar um monte de livros que o dono me disse que iria para o lixo e encontrei uma primeira edição d’O Encoberto, de Afonso Lopes Vieira. Guilherme adquire as bibliotecas que outros não querem, por não lhes entenderem o valor ou por, por serem herdadas, trazerem o sabor amargo da perda.

“É difícil desassociar a componente filosófica daquilo que é ser-se alfarrabista”, avisa, logo no início da conversa. No seu caso, assegura Guilherme José, nasceu assim e faz parte da sua essência

“A maior parte das pessoas desvaloriza os livros, não sabe o que é uma primeira edição, não sabe avaliar o conteúdo, mas há também casos de perda e a urgência de se desfazer de coisas que invocam a memória de alguém.” O alfarrabista é alguém que sabe avaliar e fazer a selecção.

"Acredito que, como aconteceu com os vinis, os livros vão passar a ser mais apreciados”, remata.

Homens que já nascem “anacrónicos”
Guilherme José escolhe a adaptação pessoal de uma das suas frases favoritas de Nietzsche para se autoretratar; “há Homens que já nascem ‘anacrónicos’”.

“É como se houvesse um deslocamento do tempo. Quem é alfarrabista entende-o.” Gosta de livros. E qualquer amante daquilo que é belo e singular fica desgostoso, quando testemunha o modo como as grandes superfícies controlam o mercado.

O livro, argumenta, é suposto ser uma coisa única, onde se guardam as melhores ideias, as mais bonitas poesias, vertidas de corações e mentes ímpares.

“Hoje, não é assim. As grandes superfícies não querem saber disso. O lucro é que decide o que é ou não publicável. É por isso que há mais ‘coisas’ da Cristina Ferreira do que obras de Proust nas estantes. Quanto mais vende, mais superficial é. O alfarrabista sabe escolher os livros de qualidade e dar-lhes uma segunda vida.”