Entrevista

“O mundo não é para velhos. E cada vez menos”

23 abr 2020 16:26

O cantor esteve na Marinha Grande para preparar um concerto, que será difundido no próximo dia 24 de Abril. Mostrou-se preocupado com colegas de profissão, que neste momento se batem com graves dificuldades económicas

Cantor esteve na Marinha Grande a preparar um concerto
Ricardo Graça
Daniela Franco Sousa

Este ano, o 25 de Abril reveste-se de polémica. Que olhar tem sobre a discussão que se tem gerado à volta das comemorações da data?

Há uma questão que já foi dita por vários políticos: a Assembleia da República tem trabalhado. E tem trabalhado com mais gente do que aquela que foi convidada para as comemorações do 25 de Abril. Penso que há um aproveitamento muito grande, da parte de quem não gosta do 25 de Abril, para falar mal. As redes sociais por vezes trazem-nos mensagens que não são verdade, mas li que há inclusive um movimento para que se ponham panos pretos nas janelas no 25 de Abril. Isso tem pouco a ver com a Assembleia da República.

Serão só os dias nervosos de confinamento a extremar posições? Ou esta situação apenas vem revelar aquilo que já eram os sentimentos distintos dos portugueses sobre o 25 de Abril?

É mais um aproveitamento de gente de direita, sendo que eu conheço muita gente de direita, de quem gosto, e que pratica a democracia. Tenho por exemplo uma enorme admiração pelo professor Adriano Moreira, que, tanto quanto eu julgo saber, não é uma pessoa de esquerda. Só que é um homem civilizado. Estes aproveitamentos sempre foram feitos e continuam a fazer-se. E às vezes à esquerda também são feitos. Portanto, isto tem a ver com pessoas.

Que mensagem deve ser transmitida aos portugueses mais de quatro décadas depois da Revolução?

Há uma frase que eu gosto muito, que é muito dita pela esquerda, e que eu transformei um pouco. Diz-se que a luta continua. Eu acho que a frase mudou de alguns anos a esta parte. A luta não continua. A luta é contínua. Sempre foi e vai continuar a ser. É uma luta que se prende pouco com a política mais directa dos partidos. Prende-se com a nossa forma de viver, com as transformações que a nossa sociedade sofreu nos últimos anos e que está a sofrer. Estamos hoje perante uma modificação muito complicada e nós não sabermos onde tudo isto vai dar.

Esta pandemia está, como muitos sugerem, ao nível de uma guerra?

Não vou tão longe. Mas durante a Segunda Guerra Mundial havia muita gente que não tinha conhecimento e que duvidava da existência dos campos de concentração. Só depois das coisas acabadas é que se faz um balanço. Portanto, vamos ver o que é isto. Vamos com calma e, principalmente, vamos assegurar-nos de que nos estamos a defender. Normalmente, estes acontecimentos trazem uma coisa boa: provocam a solidariedade.

Merece a pena, como sugerem algunsgovernantes, reequacionar as ligações entre os países da União Europeia?

Eu nunca acreditei muito na União Europeia e por uma razão muito simples. Com a idade que tenho, e estou com 73 anos, e vindo de um meio que não era pobre, mas era remediado, um remediado baixo - e se me permitem a graçola - nunca vi nenhum rico dar dinheiro a um pobre, a não ser por esmola e quando está bem disposto. Portanto, nunca acreditei na base da União Europeia. Uma coisa é achar que quanto mais nos juntamos mais força temos. Outra coisa, é quando tudo assenta numa base de economia. Hoje em dia fala-se muito de economia. E economia leva os ricos a ficar cada vez mais ricos e os pobres a ficar cada vez mais pobres. Para mim, tudo se resume a uma questão: muitos com pouco e poucos com muito.

Neste fase, muitos cedem por medo de perder o emprego, outros evitammanifestar-se por medo também... O medo é hoje o grande inimigo da liberdade?

O desconhecimento é. O desconhecimento provoca o medo. E as pessoas hoje não estão certas do que se está a passar. Nem sequer sabemos que vírus é este, nem como reage. E também é o desconhecimento que provoca o medo em termos políticos e em termos culturais.

Há quem aponte que foi a fabricação de dados que possibilitou o Brexit, também a eleição de Trump, de Bolsonaro... Que impacto podem ter as novas tecnologias sobre as liberdades e garantias das pessoas e dos países?

Depende da forma como as novas tecnologias forem utilizadas. Se forem utilizadas para o bem, é benéfico. Dou um exemplo que é entendido por todos. O Cristianismo é uma coisa lindíssima na sua base. Depois veio a Igreja...

A maior parte das vidas perdidas com covid-19 são de idosos. Em Portugal, grande parte deles estava a residir em lares. Fomos negligentes com os mais velhos?

Não foi uma questão de negligência. Ensinaram-nos, levaram-nos a preocupar-nos com a nossa vida, do dia-a-dia, para termos um carro melhor, para termos uma camisola melhor, para vivermos pretensamente melhor do que o vizinho do lado. As pessoas ao invés de irem passear para a praia, vão passear nos centros comerciais. Ou seja, estas visitas também são hábitos que nos foram criados.

Este País não é para velhos?

Nem este País, nem nenhum. Basta ouvir as palavras daquela senhora, mas senhora com 's' pequeno, que se chama Christine Lagard. Não é só este País, o mundo não é para velhos. E cada vez menos.

Que ausência lhe doí mais a si nesta fase de isolamento?

Dói o não ir à rua e o não conversar com as pessoas. Sou de ir ao café. Vou aqui e vou ali, passo pelo supermercado, vou levar a miúda à escola. A ausência destes hábitos, que eu criei, e que não são maus hábitos, pelo contrário, é o que mais me dói. De resto, e porque muitos de nós estamos agora lá em casa, nunca tive tanto tempo para estar à mesa com as minhas filhas e com a minha companheira, para falar e explicar coisas. A questão é não deixar que os telemóveis venham para a mesa. Para que tenham tempo de ouvir o que temos para dizer.

Num País onde a esmagadora maioria dos artistas se bate contra a falta de apoio e de incentivo à cultura, que impacto já está a ter este período de paralisação?

Eu ainda não passei por dificuldades, mas não consigo viver feliz quando sei que à minha volta há tanta dificuldade, sei que há colegas de profissão a passar grandes dificuldades neste momento. Admito que vai ser pior ainda. Ainda não me bateu à porta, mas provavelmente até para mim será difícil resolver alguns assuntos. Nós temos de inventar, em conjunto, novas formas de estar na vida.

Mesmo assim Paulo de Carvalho ainda é um nome acarinhado e solicitado para espectáculos?

Isso vale alguma coisa. Mas entre os meus colegas, e a maioria não é tão conhecida, há quem deva estar a passar por enormes dificuldades. Dificuldades ao nível da falta de comida. E isso é muito preocupante. E toca a muita gente, gente que não é necessariamente artista. Porque quando não se tem emprego, quando não se tem onde ir buscar dinheiro, não se tem comida.

O que gostaria que esta fase de crise, de confinamento e de mais introspecção trouxesse ou mudasse num futuro próximo? Há uma lição a tirar de tudo isto. Já a tirei há muito tempo. Não podemos esperar que as coisas mudem à nossa volta. Cada um de nós é que tem de mudar as coisas. É o que compete a quem tem capacidade para isso. Esta situação vai 'aleijar' muita gente, vai trazer problemas psicológicos a muita gente. As pessoas têm de perceber o que têm de mudar na terra onde vivem. Trata-de da velha máxima do presidente Kennedy. Não perguntes o que o país pode fazer por ti, pergunta-te o que tens tu de fazer pelo país. É muito complicado falar sobre tudo isto, até pelo grande desconhecimento que se tem sobre o vírus. Uns dizem que a pandemia nasceu da alimentação, outros dizem que tudo foi fabricado em laboratório. A informação tem muita força, para o bem ou para o mal. Vamos ver como todos nos aguentamos com a informação que nos chega. E no que respeita a Portugal, a grande parte da informação lida e ouvida está na mão de dois ou três grupos. Cabe-nos a nós estarmos atentos.