Entrevista

“O Ministério Público não procurou a verdade, mas sim arranjar culpados”

16 jul 2020 11:32

Mário Cerol e Sérgio Gomes Eram o segundo e o primeiro comandantes, respectivamente, do Comando Distrital de Operações de Socorro de Leiria na altura do incêndio de Pedrógão Grande. Foram acusados pelo Ministério Público. O juiz de instrução retirou-os do processo e o Tribunal da Relação confirmou a inexistência de qualquer culpa

Sérgio Gomes e Mário Cerol
Ricardo Graça

O Tribunal da Relação confirmou que não vão ser julgados pelo incêndio de Pedrógão. Por que razão foram acusados pelo Ministério Público (MP)?
Mário Cerol (MC) –
Atendendo às circunstâncias, tinha consciência desde a primeira hora que iria existir um processo judicial. O MP não procurou a verdade, procurou, como foi assumido pela senhora procuradora nas alegações do debate instrutório, movida por uma compaixão, arranjar culpados.
Sérgio Gomes (SG) - Inicialmente fui ouvido enquanto testemunha. Só uns meses mais tarde é que viria a ser acusado pelo MP. Não esperava ser acusado. Fomos acusados, porque não houve coragem para acusar quem deveria ter sido acusado. Quem deveria ter sido acusado? SG - Quem ao longo de décadas tem ignorado estas problemáticas. Quem acompanhou todo o processo instrutório percebeu que, se calhar, algumas daquelas entidades deveriam ser ‘chamadas à coacção’, mas não aquelas pessoas. Como disse o advogado de um dos arguidos: o MP fez mais 13 vítimas de Pedrógão.

A ministra da Administração Interna e o comandante da Protecção Civil também deveriam ser arguidos? SG - Quem deveria ter sido acusado, se calhar, era o próprio Estado.
MC –
Quando se fala de evacuações, por exemplo, as pessoas não estavam treinadas, não sabiam para onde ir. A resolução do Conselho de Ministros de 2014 que falava das evacuações, ficou na gaveta. Quem é que não colocou esta resolução em prática? Os políticos. Somos um bocado bola no meio das guerrilhas políticas. O Estado deveria ter assumido a responsabilidade desta situação. Foi o próprio Estado que falhou.

Sentiram-se abandonados?
S.G - Completamente abandonados. Desde todo o processo ter sido às nossas custas. Ainda hoje ninguém me ligou a congratular-se por eu ter saído do processo. Isto é sinónimo de que o Estado se quis descartar de uma responsabilidade que era dele e foi acusando até determinado patamar. Sabendo que no âmbito da Protecção Civil há uma hierarquia, quanto mais longe ficasse do decisor político tanto melhor. Nenhuma daquelas acusações faz sentido. Se acusassem, por exemplo, o senhor comandante nacional, já ficaria muito perto do próprio Estado. O acórdão da Relação refere aquilo que vínhamos a dizer desde que fomos constituídos arguidos. Ou a acusação teve um determinado objectivo, que foi não atingir determinados patamares, ou houve algum engano. Sou acusado de não ter cumprido com determinadas situações que nem sequer são da minha responsabilidade. Nas três horas e meia de declarações que prestei ao MP ainda como testemunha expliquei tudo. Se havia uma contradição em relação aquilo que eu dizia, face ao relatório da Comissão Técnica Independente e a outras informações que a procuradora tinha, só tinha de investigar. Se fosse investigar, se calhar, tinha de arrolar outras pessoas. Mas a função do MP é chegar à verdade. Não é acusar porque é mais fácil, até porque tem consequências nas nossas vidas e na sociedade. Houve mortes e tem de se acusar, mas não tem de se acusar porque parece bem para a opinião pública. O que se vai retirar disto? Em termos práticos não vai mudar nada.
MC - Pedrógão está igual ao nível do ordenamento florestal, por exemplo. Além de não termos apoio, no momento em que precisávamos de maior confiança ainda nos coagiram para pedir a demissão. Naquele momento, se o fizéssemos, era assumir uma culpa que conscientemente sabíamos que não tínhamos.

O Mário teve um processo disciplinar?
MC - Ainda tenho um processo disciplinar e recebi um louvor, quando saí.
SG - Eu tive dois processos e ambos foram arquivados. No processo instrutório esse arquivamento foi considerado pelo juiz. Mas, ignorado pelo MP. Reforçando o que disse o Mário, depois do que aconteceu, ele levou um louvor e eu fui convidado para ir para o Comando Nacional. Várias vezes fui abordado no sentido de me darem recados, a dizer que o melhor que fazia era pedir a demissão. Sempre disse: ‘durmo de consciência tranquila, fiz aquilo que estava ao meu alcance e que, na altura, estava determinado ser feito. Vou enfrentar tudo e todos, sempre com a mesma frontalidade e não vou embora enquanto isto não ficar decidido’. Não me revejo naquilo que está a ser feito hoje. Não é só Pedrógão que está igual. É o País que está pior, independentemente de terem sido feitas algumas melhorias. Hoje as pessoas já sabem o que hão-de fazer numa situação de perigo; foram feitos alguns investimentos nos meios de combate, mas não há mais nada. Temos tido sorte. Enquanto o São Pedro, que tem uma responsabilidade na ordem dos 99%, for amigo, vamos convivendo bem com aquilo que não é feito, com o crescimento da floresta e o êxodo rural. Vamos vivendo à sombra da sorte. Um dia a sorte vai-se embora e depois espero que não venham mais pessoas a sofrer o que sofremos por inércia de quem manda no País e pouco faz.

Quem é que não colocou esta resolução em prática? Os políticos. Somos um bocado bola no meio das guerrilhas políticas. O Estado deveria ter assumido a responsabilidade desta situação. Foi o próprio Estado que falhou
Mário Cerol

O Sérgio foi acusado de não pré-posicionar os meios face aos alertas de temperaturas elevadas, de accionar meios de muito longe, como a Viatura de Comando e Comunicações (VCOC) de Peniche e os meios terrestres do sul do distrito, de não ter accionado o helicóptero da Pampilhosa da Serra nem o que estava estacionado em Pombal.
SG -
Sou acusado disso por desconhecimento de quem acusa. Se quem acusou se tivesse prontificado a investigar percebia tudo isso. Não sou eu que acciono o helicóptero da Pampilhosa. Quando há um alerta de incêndio, o operador do CDOS [Comando Distrital de Operações de Socorro] tem dois minutos para validar e despachar meios. É isso que é o ataque inicial. Conforme está escrito nos relatórios, a mobilização do ataque inicial foi sem reparos. Acusa-me de mobilizar poucos meios e depois diz que mobilizo meios do sul do distrito. Há uma confusão naquilo que é a abordagem ao tema. Ainda enquanto testemunha expliquei a razão de ter mobilizado esses mei

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